Vida como não a conhecíamos - Capítulo 1

 

Pedra da Macela (Cunha/SP) - Foto: Wikipedia

Palco de batalhas sangrentas durante a Revolução Constitucionalista de 1932 e berço de heróis paulistas (a exemplo do lavrador Paulo Virgílio), Cunha é hoje uma estância climática pacífica e famosa pelos artesanatos em cerâmica e por suas belas paisagens. Uma cidade com ares bucólicos, localizada entre as Serras do Mar e da Bocaina, e que se desenvolve sem pressa entre morros, vales e campos de lavandas. É ali que um famoso neurocirurgião costuma relaxar quando o estresse, tão comum no dia a dia de um profissional da saúde, atinge níveis perigosos para alguém que precisa estar o tempo todo em perfeito equilíbrio.

Estava sozinho em uma pequena praça, de frente a uma quadra poliesportiva, no final de um domingo frio de agosto, auge do inverno no hemisfério sul. Ao longe, enxergava o único campo de futebol da cidade, tão deserto e silencioso quanto tudo à sua volta. Mais ao fundo do cenário, construções recentes desafiam os aclives acentuados que intermedeiam as planícies do município.

A noite se aproximava lentamente e trazia com ela a tradicional queda da temperatura. O vento, ainda brando, tornava-se mais frio com o passar dos minutos, mas ele mal percebia a alteração climática. Sua mente estava distante e parecia transportar com ela o seu corpo, levando-o a embarcar em uma viagem através do tempo e do espaço.

Ele jamais seria capaz de esquecer o dia em que sua amada esposa falecera em seus braços. A sensação de impotência de um profissional da saúde diante da morte inevitável era uma carga difícil de suportar, sobretudo quando se tratava da pessoa mais importante de sua vida. Para os mais próximos, ele tem utilizado uma alegoria para expressar o quanto sente-se perdido desde então. Costuma dizer que naquele exato momento desviara-se da estrada principal de sua vida, ingressando em uma série de ruas sem saída e de vicinais que não o conduziam a lugar algum.

Já fazia quase um ano desde o fatídico acontecimento, mas seu quadro emocional não apresentava melhoras. Pelo contrário: agora também precisava lutar contra a insônia que começava a afetar seu desempenho profissional. O conselho dado na semana anterior, em tom de ultimato, pelo diretor do hospital onde trabalha, bem demonstrava a gravidade da situação: “Dr. Rafael, procure um terapeuta”.

Sua conhecida racionalidade indicava ser esse o caminho mais indicado, senão o único, para não mergulhar em um quadro depressivo mais sério, porém havia nele também um lado místico e intuitivo que o levava a desconfiar que as respostas que procurava não poderiam ser encontradas no estudo das sinapses que estabelecem as conexões cerebrais, mas em algo que está além do corpóreo. Isso o deixava preso em um dilema interno, pois sempre negara a utilidade da metafísica.

Ele já havia trabalhado, desde os tempos da faculdade, em alguns programas e ensaios sobre experiências de quase morte – as chamadas EQMs. Testemunhara, como médico e cientista, casos que a ciência e a medicina ainda não são capazes de explicar. Algumas ocorrências apresentavam particularidades difíceis de serem refutadas; todavia, devido à ausência de evidências demonstráveis, sempre negou a possibilidade de sobrevivência da consciência à morte física. Os artigos que escreveu sobre o assunto seguiam essa linha de raciocínio. É isso o que sempre dizia a seus pares no hospital e o que procurava ressaltar aos queridos alunos na faculdade.

No dia seguinte, esse seria o tema da aula que estava preparando. Desta vez, ele pretendia se desviar dos conceitos-padrão e apresentar novas e intrigantes teorias para serem discutidas com seus alunos. Queria dar às EQMs uma nova oportunidade de serem tratadas de forma científica. Seu objetivo é realizar uma pesquisa inovadora, baseada em parâmetros de abordagem inéditos, desenvolvidos a partir de suas experiências e de alguns estudos (um tanto controversos) publicados por outros médicos e cientistas. Formaria, para tanto, um grupo de pesquisas com os alunos que demonstrassem interesse.

Não contara para ninguém, mas há alguns dias tornara-se vítima de alucinações que remetiam à existência de vida após a morte. Esses eventos, aliados ao inconformismo pela morte da querida Rosa (inseparável companheira desde o início da adolescência), aumentavam sua obsessão pelo assunto e a ansiedade por realizar novas experiências, o que se tornara meta prioritária nesta fase de sua vida.

Respirou fundo para diminuir os batimentos cardíacos e organizar as ideias, abriu o inseparável notebook e fez algumas anotações. Ao concluir esta tarefa, fechou os olhos e deixou que algumas lágrimas, a tanto tempo retidas, enfim escapassem. No dia seguinte retornaria à Capital e apresentaria o projeto para seus alunos.

Haverá mesmo outro plano de existência? Enquanto se questionava, uma lufada de ar gelado o tomou de surpresa, causando-lhe um estranho arrepio.

Talvez este seja um sinal, pensou.

Talvez.

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