[Resenha] Estação de Trânsito - Clifford Simak
- Um Bucólico Espacial de Simak -
Por Ricardo
Guilherme dos Santos
(Resenha incluída na edição nº 108 do fanzine Somnium)
(Resenha incluída na edição nº 108 do fanzine Somnium)
Way Station (1963), ganhador do Prêmio Hugo
em 1964, até onde sei nunca foi editado no Brasil. Em Portugal, recebeu tradução
de Gilberto Almeida e foi publicado pela Argonauta (volume nº 130-A),
aparecendo depois como o título nº 200 da Coleção Vampiro, em edição dupla com
o romance policial O Caso da Vela Torcida, de Perry Mason. De Clifford Simak,
eu havia lido apenas Boneca do Destino e, em seguida, Cidade. Gostei muito do
primeiro livro, mas a paixão pela escrita de Simak surgiu com intensidade a
partir da leitura do segundo. Cidade fez com que em me interessasse muito pela
obra do autor. Pesquisei na internet
e descobri que a coleção Argonauta publicou vários de seus romances. Também
fiquei sabendo que, na opinião de muitos, Way
Station disputa com City o título
de obra mais relevante deste escritor.
Após muito
procurar, consegui adquirir um exemplar da publicação feita pela Coleção
Vampiro. Dizem, aliás, que o volume 130-A da Argonauta é muito mais raro, quase
uma lenda, e que quem o possui teria uma verdadeira preciosidade em sua
biblioteca. Hoje sou mais um dos que pensam assim. Seja pela raridade, seja
pela qualidade da obra, Estação de Trânsito é, de fato, uma preciosidade
literária.
Enoch Wallace
era um veterano da Guerra de Secessão norte-americana, que passou a morar
sozinho após a morte dos pais. Em determinado dia, ainda jovem (tinha cerca de
trinta anos de idade), recebeu uma insólita visita em sua fazenda. O forasteiro
tinha uma aparência incomum, de uma estranheza que chegou ao ápice no momento
em que a roupagem humana da criatura começou a ser descortinada. O rosto do ser
abriu-se, revelando uma face alienígena que causou espanto aos olhos de Enoch.
A criatura, no entanto, era amigável e conseguia falar o idioma nativo com
alguma clareza, tornando possível a comunicação entre ambos. Seu nome era
impronunciável, por esta razão Enoch lhe pediu permissão para chamá-lo de
Ulysses, explicando-lhe a origem do nome. O alienígena gostou do que ouviu e
assentiu em ser assim chamado.
Ulysses, porém,
não viera apenas para uma mera visita. Ele trazia uma inusitada proposta da Central Galáctica, entidade para a qual
trabalhava. Os responsáveis por ela pretendiam transformar a casa de Enoch em
uma espécie de estação de trânsito,
por intermédio da qual habitantes dos planetas civilizados da Via Láctea
transitariam durante suas viagens pelas estrelas. O lar de Enoch seria equipado
com todo o aparato tecnológico necessário para receber e despachar os
viajantes, servindo como escala nestas
jornadas. Enoch, por sua vez, seria o encarregado desta estação de trânsito sui generis.
Passado o susto
inicial, a proposta foi aceita e o alienígena Ulysses, com o tempo, tornou-se
seu amigo.
Enoch passou a
manter um diário detalhado sobre cada evento por ele presenciado, discorrendo
sobre as visitas recebidas, suas impressões acerca dos visitantes e o que eles
contavam sobre as particularidades de seus planetas de origem. Dentro da
estação, ele não envelhecia nem sequer um minuto, o que lhe causou um problema:
com o correr das décadas, sua eterna juventude passou a ser objeto de
estranheza pelos moradores das propriedades vizinhas, obrigando-o a se tornar
cada vez mais recluso. Ainda assim, a fama do homem que passara dos cem anos de
idade mantendo a aparência de um jovem acabou chegando até entidades
governamentais, despertando a curiosidade do Serviço Secreto, em especial do
agente Claude Lewis. A partir de então, Enoch passou a ser vigiado.
Neste ponto,
creio ser importante fazer um alerta aos que leem este texto: ele revela
diversos detalhes da trama que alguns leitores podem preferir não conhecer.
Sugiro, portanto, que leiam o restante apenas se não se importarem com o excesso
de revelações.
A solidão de
Enoch, intensa, emociona o leitor. Como responsável por uma estação de
trânsito galáctica, ele recebia muitos passageiros, os mais diversos e
inimagináveis seres alienígenas, porém eram quase sempre visitas rápidas. Além disso,
a dificuldade de interação entre as espécies era muito grande. Enoch pouco saía
da estação. Fazia apenas um pequeno passeio diário e ia até a agência de
correios local para retirar os periódicos que assinava, como única forma de se
manter informado sobre o que acontecia em nosso mundo. Winslowe, o carteiro,
tornou-se um de seus poucos amigos, o único ser humano com quem conversava com
habitualidade. A outra humana com a qual mantinha contato era Lucy Fisher, a
filha surda-muda do fazendeiro vizinho. Enoch e Lucy entendiam-se graças a uma
afinidade silenciosa. Havia uma ligação especial entre eles. Comunicavam-se pela
troca de olhares, às vezes quase por telepatia. Dentre os amigos alienígenas,
além de Ulysses, merecem destaque os representantes de uma espécie que ele
chamava de Hazers, seres extremamente amigáveis que projetavam uma aura
colorida à sua volta, emitindo energias de pacificidade e amizade.
Lucy Fisher
parecia ter poderes que excediam a compreensão humana. Foi capaz de curar uma
borboleta que tinha uma asa partida, sem lançar mão de qualquer medicamento ou
procedimento específico. Para realizar tal proeza, usou apenas uma espécie de
energia espiritual (pelo que fica subentendido, sua pureza). Ela também foi
capaz de colocar em funcionamento um misterioso aparato alienígena, uma
pirâmide formada pela junção de diversas esferas coloridas e cintilantes,
presente que Enoch ganhara há muitos anos e que jamais imaginara qual seria sua
utilidade. Era, porém, a bondade de Lucy, assim como sua conexão com a
Natureza, que a faziam tão especial. A garota parecia estar sempre em contato
com algo sublime.
“Lucy era um ser dos bosques e das colinas, da flor da
Primavera e do voo dos pássaros no Outono. Conhecia estas coisas, vivia com
elas, e era, de um modo algo pessoal, uma parte específica delas. Era alguém
que habitava à parte um velho e perdido compartimento do mundo natural. Ocupava
um lugar que o Homem de há muito abandonara, se é que, de facto, algum vez lhe
pertenceu.” (página 44)
Durante a
obra, fica clara a preocupação de Simak com o futuro da humanidade e com a
questão da espiritualidade. Ele questiona a razão de estarmos aqui e parece
espelhar nas preocupações de Enoch suas próprias inquietudes. Quando Enoch
reflete – e esta obra é essencialmente reflexiva – acredito ser Simak que está
refletindo e manifestando suas preocupações e pesadelos. Em determinado
momento, ele discorre sobre um complexo mecanismo conhecido como Talismã, por
intermédio do qual seria possível realizar contatos com a força espiritual que
governaria a galáxia. Parece-me – não estou certo – que o autor desenvolveu o
assunto mais profundamente em outra(s) obra(s). Há um livro de sua autoria,
inclusive, chamado A Irmandade do Talismã, publicado pela Argonauta na edição
nº 294. Este engenho ainda voltaria a ser assunto na parte final da trama, cujo
desfecho não convém revelar, pois isto macularia ao menos parcialmente o prazer
da leitura.
“Ele sentiu que estremeceu ao pensar nisso – o puro
arrebatamento de tocar a espiritualidade que inundava a galáxia e, sem dúvida
alguma, o Universo. Isso seria uma garantia, pensou, uma garantia de que a vida
ocupava um lugar especial no grande esquema da existência, de que qualquer
pessoa, por muito pequena, fraca, ou insignificante que fosse, podia mesmo
assim contar para alguma coisa na imensidão do espaço e do tempo.” (página 83)
A solidão fez
com que Enoch criasse amigos imaginários, espécies de hologramas fabricados com
tecnologia das estrelas, mas que pareciam feitos de carne e osso. Dentre estes,
merece destaque Mary, uma espécie de mulher
ideal para o protagonista, uma junção de Lucy com uma bela garota que Enoch
conhecera apenas de relance nos tempos em que era soldado. E então o inevitável
acontece: Enoch apaixona-se por sua Monalisa. A boa surpresa é que seu amor é
correspondido. Entretanto, o relacionamento entre o ser real e a criatura
imaginária (mas que se sentia plenamente viva) chegou a um ponto de inevitável
ruptura. Simak discorreu com maestria sobre toda a carga emocional que o fim do
relacionamento causou.
“Mary nunca mais voltaria, nem ele tornaria a chamá-la, ainda
que pudesse, e tanto o seu mundo irreal como o seu irreal amor, o único amor
que já verdadeiramente tivera, desapareceriam para sempre.” (página 89)
Por várias
décadas, a rotina de Enoch como administrador/encarregado da estação pouco se
alterou, porém seus aprendizados foram imensuráveis. Dentre os fatos marcantes,
o falecimento de um Hazer dentro da estação. Seguindo orientações da Central
Galáctica, Enoch adotou um procedimento padrão da Terra no caso de óbitos,
enterrando o viajante em sua propriedade, com todas as honras, ao lado dos
corpos de seus pais. Anos depois, todavia, o investigador Claude Lewis desenterrou
o corpo do alienígena, subtraindo-o, atitude que deu início a uma discórdia
entre as espécies que compunham a Central Galáctica, um desentendimento de
grandes proporções que poderia por fim não apenas à única estação de trânsito
da Terra, mas também, para desespero de Enoch e Ulysses, a todo o projeto de
expansão das estações no braço espiral da
galáxia. Neste ponto, cumpre observar que a obra foi escrita entre fins dos
anos 1950 e início da década de 1960, época na qual começava a se desvendar a existência
de braços espirais na Via Láctea. Provavelmente, Simak referia-se à ramificação
de Órion.
Simak parece
ter escrito a obra sob uma forte influência dos horrores da Segunda Guerra
Mundial e do ambiente tenso da Guerra Fria. O personagem principal – um veterano
da Guerra Civil norte-americana, como mencionado no início deste texto – em
dado momento viu-se diante da iminência de outro conflito, de proporções
mundiais e potencialmente muito mais danoso do que aquele do qual participara.
Utilizando um complexo mecanismo estatístico criado por especialistas
alienígenas, Enoch descobriu que a Terra estava a caminho de um devastador
conflito mundial. Foi inevitável que recordasse seus distantes tempos de
soldado – os quatro anos durante os quais teve de matar para não ser morto – e
refletisse sobre a insensatez da espécie humana.
“Compreendera nesse momento a loucura da guerra, o gesto fútil que a
dada altura deixou de ter significado, a ira impensada que deve ser alimentada
para além do incidente que a originou, a crença ilógica de que um homem só,
pela morte ou pelo sofrimento, podia justificar um direito ou sustentar um
princípio.
Algures, pensou, no longo retrocesso pela história, a raça humana tinha
aceitado uma demência por princípio e tinha persistido nela [...].” (páginas
162-163)
Diante deste
cenário, em conversa com o amigo Ulysses, Enoch descobriu que, como membro da
Central Galáctica há tantos anos, poderia falar em nome da Terra, solicitando
ajuda àquela entidade para que a guerra que vislumbrou não acontecesse. Segundo
Ulysses, Enoch tinha chances de ter o seu pedido atendido, porém o preço a ser
pago pelo “tratamento” – por toda a espécie humana – seria alto: uma regressão
intelectual, com a perda da habilidade de compreender e manejar tecnologias
avançadas. Com isto, o ser humano tornar-se-ia incapaz de produzir instrumentos
potencialmente devastadores para o planeta, mas também os aparatos tecnológicos
pacíficos. Ainda poderia haver guerras, porém com a utilização de armas menos
destrutivas.
Enoch passou
a refletir sobre a enorme responsabilidade que lhe competia: decidir se devia
ou não pedir a ajuda da Central Galáctica e, assim, optar pela provável guerra
mundial ou por um processo de regressão intelectual do ser humano, como
tratamento para nossa belicosidade. Começou a pensar em todo o conhecimento que
acumulara nos contatos com as criaturas das estrelas, saberes que jamais pudera
ou poderia vir a compartilhar com os demais membros de sua espécie. Enoch
pensou nos livros, artefatos e conhecimentos médicos de origem extraterrestre,
em especial numa caixa que ganhara e que continha substâncias capazes de curar
todos os males. O processo de crise psicológica do protagonista foi descrito
com profundidade, revelando-se um mergulho na psique de Enoch. Simak conseguia
descrever muito bem a imensa crise de consciência que aquele dilema levou-o a
enfrentar.
“Poderia um homem decidir, por comparação, se a guerra seria pior que a
estupidez, ou vice-versa? A resposta parecia ser que não. Não havia processo de
medir a possível catástrofe em qualquer das circunstâncias.” (página 155)
São estes
dois fatos que conduzem ao clímax na parte final da obra: a possibilidade de
desativação da estação de trânsito terrestre, com abandono do projeto de
expansão destas vias galácticas, e a terceira guerra mundial, que, segundo
previsões estatísticas infalíveis, se avizinhava da Terra. Cerca de cem anos
tinham decorrido desde que Enoch iniciara aquele trabalho e, ao refletir sobre
tudo o que vivenciara, ele questionou que espécie de criatura teria sido ele
durante estes cem anos de solidão. Ao mesmo tempo em que procurava recuperar o
corpo do alienígena, como forma de minorar as consequências do incidente
intergaláctico, uma revolta contra ele era arquitetada pelo pai de Lucy, sob a
falsa acusação de rapto da jovem. A vida de Enoch começou a correr risco.
Estação de
Trânsito é um romance campestre, com belíssimas descrições que lembram o bucolismo. A casinha em meio à natureza,
com poucos vizinhos, os hábitos simples... Você quase pode sentir a terra sob
seus pés e o aroma das flores do campo. E, no entanto, é um romance de ficção
científica, que envolve uma quantidade incontável de espécies alienígenas (com
todas as suas características físicas e psicológicas peculiares), tecnologias
avançadíssimas e conflitos de proporções galácticas. Este romance pode parecer
uma incongruência em si mesmo, mas não é. Antes, é uma bem sucedida junção do
heterogêneo em uma obra escrita com qualidade literária difícil de ser
igualada. Simak consegue fazer com que o clima rural de uma velha casa de campo
nos pareça o cenário perfeito para que Enoch contracene com o futurismo [muito]
controverso das viagens acima da velocidade da luz. A ideia que serviu de
premissa inicial ao texto – a existência de uma estação de passagem, uma
“escala” para viajantes da galáxia – é original e muito imaginativa. A
residência de Enoch transforma-se numa espécie de ponto de encontro, um local
propício para se celebrar amizades com seres de outros mundos. Os diálogos
mantidos entre o protagonista e estas criaturas – tanto as reais quanto as
imaginárias – são bem elaborados, o que aumenta o prazer da leitura. Não
conheço outro livro com tal premissa e, se algum escritor no futuro se basear
em proposta semelhante, não creio que seja capaz de desenvolver o texto com o
mesmo brilhantismo de Clifford Simak.
E as qualidades
de Estação de Trânsito não param por aí. Trata-se de obra que evita o banal
expediente das cenas de violência, podendo ser indicada (apesar de tratar de
temas adultos) até para leitores mais jovens. Embora Enoch tenha uma espingarda
como companheira quase inseparável, habitualmente só a colocava em funcionamento
durante simulações de caça a seres irreais (note-se: a obra foi escrita há pelo
menos cinquenta anos e seu autor já previa o uso de realidades virtuais como
forma de entretenimento), que realizava no subterrâneo de sua casa-estação. Na
verdade, como já frisado nesta resenha, o personagem principal praticamente não
saía da estação que administrava. Este panorama pode parecer tedioso para
muitos leitores, porém o romance ganha uma força incomensurável graças à
capacidade de cativar existente tanto na escrita de Simak quanto na
personalidade do protagonista. Enoch é um administrador diligente, que leva
muito a sério suas responsabilidades e tem imenso prazer em receber os
passageiros galácticos, estudando seus comportamentos, suas fisiologias, e
imaginando como deveriam ser belos, sob as mais diferentes óticas, os planetas
de onde se originavam. É um observador do outro, um estudioso do diferente, um
contemplador da diversidade da Criação.
Com suas
reflexões, Enoch nos conduz a também meditar. Sinto-me à vontade para dizer que
Estação de Trânsito é a ficção científica mais reflexiva a que já tive acesso.
Em momento algum a adrenalina é usada como um ingrediente da obra. São poucas
as cenas de ação. Elas surgem apenas ao se aproximar o final da trama, onde há
momentos de tensão, com situações criadas por explosões de sentimentos, mas que
culminam em pacificidade e, sobretudo, em aprendizado. Todo este cenário – vale
frisar – foi conduzido com muita maturidade pelo autor. Simak fez questão de
dar primazia à profundidade dos sentimentos e reflexões, mesmo quando seus
personagens se viram diante de situações de confronto físico. Nada de violência
gratuita.
Estação de
Trânsito cativa com naturalidade; agrada sem precisar utilizar qualquer artifício.
É uma viagem por toda a galáxia e também ao interior de diversas criaturas,
sobretudo do atormentado Enoch, sem que para isso seja necessário sair de
dentro de sua propriedade no campo. Some-se a isso a escrita rica de Simak –
quase poética, a exemplo da de Bradbury – e a criatividade sem limites do
autor. Uma obra fascinante.
“Era verdade, pensou Enoch. Assim
acontecia com o Homem; fora sempre assim. Trouxera o terror dentro de si; e a
razão do seu medo fora, sempre, ele mesmo.” (página 209)
Ao final da
leitura, fica difícil entender porque Estação de Trânsito não ganha novas
edições em língua portuguesa.
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