Conto: Mente Viva


Em um ponto futuro de um universo alternativo...


Sou um maculado: tenho o maldito “M” tatuado em meu ombro direito. Isso, caros leitores, significa que já fui autuado pela Polícia do Pensamento. Aconteceu quando eu estava lendo às escondidas em um trem do metrô paulistano, entre as estações República e Santa Cecília. Tinha em mãos uma surrada edição de bolso do romance Água Viva, escrito por Clarice Lispector, a autora preferida de minha querida Maria. De nada adiantaram meus desajeitados esforços para ocultar o pequeno livro, nem mesmo minha surrada jaqueta de couro conseguiu camuflá-lo dos olhos de um policial sardento e sisudo que, à paisana, rondava aquele vagão. Mas também... que ideia a minha – ler em público! É preciso ser muito ingênuo para fazer isso. Ou louco.

E eu acho que sou as duas coisas.

Desde que o DPL - Decreto Proibitivo da Leitura foi aprovado pela Nova Ordem Teocrático-Militar, todos os livros, à exceção de uma versão da Bíblia aprovada pelo Conselho Superior do Evangelho, começaram a ser queimados. Sim, é a vida tentando imitar a ficção de Bradbury! Foi estipulado um prazo para que todos entregassem seus exemplares nas unidades da recém-criada Polícia do Pensamento. Quem não o fizesse, estaria sujeito a penalidades executadas pelos Carrascos instituídos pela Nova Ordem. E, quase sempre, eram impostas torturas psíquicas que causavam danos ao cérebro. Como consequência, a capacidade de intelecção era afetada e as pessoas passavam a ser doutrinadas com maior facilidade.

Historicamente, nossos governantes sempre quiseram o povo burro e manipulado, mas antes isso era dissimulado. Agora, tudo estava às claras. Pelo menos, o inimigo mostrava finalmente sua verdadeira face.

Meses depois, os agentes da Polícia do Pensamento começaram a invadir as casas e subtrair todos os livros encontrados, queimando-os em seguida. Por fim, entregavam os “criminosos” aos asquerosos Carrascos. Muitas pessoas resistiram bravamente, mas essa bravura não lhes custou apenas a sanidade: custou-lhes também a própria vida. Nessa segunda fase da operação, a brutalidade aumentou exponencialmente. A busca por conhecimentos, o culto ao intelecto e o exercício do raciocínio passaram a ser sinônimo de fuzilamento sumário. Apenas alguns cidadãos – denominados oCultos – conseguiram esconder determinados exemplares e fugirem em seguida para abrigos precários construídos no subsolo.

Eu não tive coragem de tentar fazer isso, mas Maria teve (minha querida Maria). Ela me falara de um alçapão camuflado em seu quintal e também sobre o pequeno esconderijo que construíra para os livros que tanto amava. Assim que eu soube que os agentes haviam passado pela rua onde ela morava, corri até lá para ver se estava tudo bem. Porém, encontrei apenas seus livros, devidamente escondidos. De Maria, nem sinal. Tomei a liberdade de pegar um único e pequeno exemplar, aquela edição de bolso que encontraram comigo no metrô. Era para ser algo que eu pudesse ler e reler às escondidas, sem despertar suspeitas, para celebrar a independência intelectual de Clarice e também para recordar a coragem de Maria.

Isso, é claro, se eu tivesse o discernimento necessário para agir como um oCulto.

Como veem, tornou-se quase impossível ter um livro em casa e um verdadeiro suicídio portar um exemplar em público. Por mais que você tente escondê-lo, há sempre um par de olhos atentos, ansiosos para denunciar o Portador e ganhar o bônus oferecido pela Nova Ordem. Esse bônus, tão desejado pelos Vassalos (assim chamamos os que se curvaram às imposições da ditadura), nada mais era que poleron – a droga utilizada pelos ditadores golpistas para manter os Vassalos sob seu jugo. Sim, há aqueles que nos denunciam em troca de algumas ampolas de uma droga que os mantém imbecilizados. O poleron é um produto químico injetável, que conduz seus usuários a universos oníricos, criados e controlados pelos programadores oficiais da Inteligência dos Costumes, órgão diretamente subordinado ao Conselho Superior do Evangelho.

Sinto falta de Maria. Gostaria ao menos de saber se ainda está viva, embora não me iluda muito com essa possibilidade. Ela foi uma das primeiras líderes dos oCultos, minha idealista ex-namorada que tanto amo e admiro, a mulher que abriu meus olhos e que acertava ao dizer que eu não teria coragem de me contrapor ao Sistema.

Mas isso mudou. Ah, isso mudou bastante. Felizmente, a lucidez de Maria deixou uma semente em mim.

Quando fui abordado pela Polícia do Pensamento, criei uma verdadeira balbúrdia dentro do metrô lotado. Livrei-me do livro, tomei alguns sopapos, fui autuado e até ganhei o tal “M” no ombro, mas a prova de minha culpa sumiu no meio da confusão. Consegui escapar, graças a algumas pessoas que juraram (pelo deus da Nova Ordem) minha inocência. Felizmente, ainda existe gente boa. Com o clamor deles, ficou difícil para os policiais me levarem (sabe Deus para onde). O povo, quando unido, ainda tem alguma força. É isso que me faz ter ainda uma tênue esperança. É verdade que fiquei maculado com a autuação, mas no final das contas sei que tive muita sorte. Hoje em dia basta uma mera suspeita para a prisão e as torturas. A comprovação da posse de apenas um único exemplar já é suficiente para ser indicado à pena de morte.

O mais importante é que esse acontecimento despertou-me de vez. Antes que eu passasse a ser vigiado de perto (e certamente eu viria a ser), voltei à casa de Maria e peguei mais alguns exemplares. Decidi abraçar pra valer a causa dos oCultos. Agora, estou em um esconderijo nojento no subsolo do coração de Sampa, junto a mais dez malucos que ousaram desafiar o corrupto poder reinante. Estamos tentando colocar em funcionamento uma parafernália eletrônica para nos comunicarmos com outros insurgentes e também para espionar a inteligência artificial que gerencia e protege cada passo dos membros da Nova Ordem. Sentimos fome e sede, mas precisamos ter muito cuidado ao buscar alimentos, pois eles já sabem de nossa existência. Somos oficialmente fugitivos e agora estão à nossa caça. Certamente, eles não veem a hora de nos punir de forma exemplar.

Lembro-me de que há algum tempo, enquanto a Democracia ainda vigorava, mas a Economia não andava bem, algumas pessoas clamavam pela então denominada “intervenção militar constitucional”. Bem, essa Ditadura insana que agora nos governa é o resultado do clamor destas pessoas. Que fique registrado para as próximas gerações que não existe, jamais existiu e duvido que venha a existir algum dia uma intervenção militar “constitucional”, a não ser que se trate de uma constituição que venha a ser imposta por eles, sem a previsão de garantias aos direitos fundamentais. A Democracia, tão desvirtuada por governantes corruptos (e sempre tivemos muitos deles), ainda é a melhor opção. Chamem-na de menos pior se preferirem, mas não voltem a trocá-la por uma ditadura. E não sejam ingênuos a ponto de acreditar que um governo com inclinação ditatorial está livre da corrupção. Ela existe sim, apenas fica muito bem escondida debaixo do tapete. E ai de quem tentar levantá-lo!

Nos regimes democráticos, ao menos ela pode ser denunciada.

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