Conto: Transição
(Crédito da imagem: Robin Booker)
Não consigo entender o que se passa
comigo. Estou em um lugar que não reconheço e não consigo recordar ao certo quem sou. Cristalino, em minha mente, apenas o semblante de
uma mulher de cabelos e olhos castanhos, com feições delicadas e sorriso
encantador. Há pouco consegui visualizá-la poucos metros à minha frente, porém ela se apresentou de forma nebulosa, parecendo uma linda assombração. Seu corpo, sem consistência
alguma, desmanchou-se quando tentei tocá-la. E então ela se foi, misturando-se
à atmosfera colorida deste lugar.
Noto
que a imagem desta mulher faz com que eu me recorde da palavra amor. Amor... sim, eu me lembro! É um
sentimento, uma percepção. Algo avassalador, envolvente, muito difícil de definir
com clareza. Não tenho dúvidas de que é a emoção mais intensa que já vivenciei.
Mas... espere! Há algo novo, muito forte também, porém dolorido. É uma sensação
de vazio, de perda, que começa a me causar grande sofrimento.
Batalho
para colocar ordem em meus sentimentos e organizar as reminiscências que
invadem meu cérebro. Em vão. Olho para o céu alaranjado e vejo três pequenos
sóis a enfeitá-lo. Eles me dão a certeza de que não é este o planeta onde vivo.
Ou vivi. Desespero-me: onde estou afinal?
Devo estar morto. De repente,
deparei-me com esta sinistra constatação.
Procuro
tocar meu corpo. É estranho: observo que ele possui elasticidade, que pode
ser esticado sem que isto me cause dor. Estou seguro, entretanto, de que antes
não era assim.
Tento entender por qual razão minha
expressão corpórea possui tão pouca solidez agora. A matéria que me constitui é
maleável e quase pode ser transpassada pelos raios solares. Todavia, não é como
a imagem da bela mulher que visualizei instantes atrás. Sua visão era mais
fluída, guardando simetria com aquilo que minha mente sugere ser um espírito. Eu, por outro lado, pareço ser
constituído por uma matéria intermediária. Nem corpo, nem espírito.
Com a mão direita, aperto meu braço
esquerdo. Quero sentir meu corpo novamente, desvendar a substância que o
constitui. Constato que sou formado por um elemento gelatinoso, de coloração
âmbar. Fico intrigado, fecho os olhos e concentro-me. Preciso trazer à tona
novas recordações. Desejo saber como foi minha vida, quem eu era e como morri
(se é que de fato faleci). Necessito recuperar fatos que me ajudem a
compreender o que se passa comigo agora.
O esforço dá um resultado
indesejado. Volto a sentir aquela dor, aquela impressão de vazio. É uma
sensação que desperta em mim emoções profundas, afetando-me de uma maneira
intensa e difusa.
Mais uma palavra recordada: saudade. E um novo sentimento – o mais
desagradável de todos que já experimentei: culpa.
Vaticino que, em algum momento noutra existência, fiz algo ruim, algo que
resultou em um rompimento.
Intuo
que é isto que tanto dói recordar.
Alguma força misteriosa interrompe
meus pensamentos. Sinto meu corpo-espírito
ser levado, numa fração de segundos, para um recanto a quilômetros de onde me
encontrava. Perco a consciência.
Quando
recobro os sentidos, noto-me à sombra de uma árvore de caule grená e folhas
marfim. Respiro profundamente e percebo-me revigorado.
Sinto-me
grato.
É
manhã agora. No céu, vejo o primeiro Sol nascendo. É o menor dos três e possui
coloração avermelhada. Um impulso elétrico agita meu cérebro, mas felizmente
não me causa dor. É apenas uma espécie de recuperação de conhecimentos
pregressos. Aquele Sol pequenino... Passo a compreender que se trata de uma
estrela do tipo anã vermelha.
Interessante lembrança. Acho que tenho aquilo que chamam de curiosidade científica – outra expressão
que surge num relance de memória. Pena que minhas recordações surjam assim de
forma tão fragmentada...
Bem,
creio ser este meu segundo dia aqui. A região onde me encontro neste momento é
formada por morros e vales que parecem não ter fim. Estou numa elevação do
terreno, em um local que emana aromas silvestres. Acima de mim, vejo alguns
pássaros engraçados e outros até graciosos. De imediato, afeiçoo-me a estas
criaturas. No entanto, é o cenário que enxergo à minha frente, numa depressão
do terreno, que está encantando meus sentidos.
Visualizo um rio estreito e extenso,
atravessando de forma sinuosa o gramado verdejante que cobre toda aquela
região. Suas águas azuladas brilham muito mais do que se poderia esperar do
reflexo de um sol tão tênue. Parecem ter brilho próprio, como se algum elemento
químico as fizesse resplandecer. Levanto-me; decido caminhar até lá e conferir
de perto o panorama.
Já no início do percurso, sinto minhas
pernas leves e ando sem qualquer esforço. É uma experiência fascinante. Creio
que, em razão de minha substância possuir pouca densidade, a locomoção torna-se
suave. Divirto-me. Posso até... Deslizar! Já não preciso movimentar as pernas;
posso planar a poucos centímetros do chão! A irrelevância de meu peso me parece
insuficiente para explicar este fenômeno. Reflito por alguns instantes e tenho
como resposta uma vaga ideia do que significa o termo gravidade. Parece que ela exerce alguma influência sobre minha
estranha forma de locomoção.
Movimento-me
de forma desengonçada, mas em seguida abro um sorriso – meu primeiro sorriso
neste lugar! A experiência torna-se prazerosa. Aspiro o ar do local, que é puro
e perfumado. Deslizo até o rio misterioso, ávido para desvendar seus segredos.
Alcanço
o rio em questão de meros instantes, como se a distância que nos separava fosse
mínima. Admiro o azul das águas, que é de uma beleza indescritível. Seu brilho,
apesar de intenso, não ofusca meus olhos. Uma ideia vem-me à mente: não me
recordo de minha aparência física, mas tenho no intelecto a convicção de que as
águas podem refletir nossa imagem. Uma sensação angustiante se apodera de mim:
a expectativa por desvendar meu semblante!
Apressado
e de forma atabalhoada, fico de joelhos às margens do rio resplandecente.
Percebo a emoção que experimento tornar-se mais intensa, em forma de rápidas
pulsações em meu peito. Aperto o tórax. Minha mão, aos poucos e sem me causar
qualquer incômodo, começa a penetrá-lo. Assusto-me e desfaço minha ação. Tenho
a intuição de que esta região do meu corpo deveria abrigar vários órgãos
internos. Ainda tenho a impressão de possuí-los. Concentro-me, cerrando os
olhos com força. Por fim, concluo que estas pulsações são causadas por um
precioso mecanismo conhecido como coração.
Mas... Não o localizo em meu peito!
Pressiono
meu tórax outra vez. Minha mão direita, embora com alguma dificuldade, consegue
atravessá-lo, porém sem encontrar órgão algum durante o trajeto. Ela identifica
apenas a mesma substância gelatinosa que constitui meu aspecto exterior. É um
elemento único e viscoso, que se recompõe com rapidez após ser penetrado.
Uma
intrigante constatação: a lembrança da palavra coração trouxe-me dores profundas dentro de meu peito, embora eu
tenha me cientificado de que nada existe em seu interior. Contraio os músculos
do rosto, num esforço para suportar a sensação desagradável. Lembro-me de que
vim até as margens do rio com o objetivo de ver minha face. Curvo, então, meu
corpo na direção das águas. Abro os olhos e visualizo-me. Finalmente, estou
vendo meu semblante!
A
ansiedade que me assombrava aos poucos se desvanece, parecendo substituída
pelas recordações que minha fisionomia começa a me trazer. Concluo que, se me
concentrar nas boas lembranças, sentir-me-ei sempre bem. Entretanto, sei que
preciso recordar em detalhes tudo o que vivi, seja agradável ou não. Só assim
poderei compreender o que se passa comigo.
É
uma necessidade da qual não posso fugir.
O
rio reflete a imagem de um homem de meia idade, com escassos cabelos negros e
olhos castanhos escuros. Toco meu rosto e assusto-me ao perceber uma rápida
alteração em minha substância. Agora, posso diagnosticar a presença de carne e
ossos. Apavoro-me diante da mutação. No instante seguinte, porém, recordo-me de
que esta era minha aparência anterior. Não há beleza, mas há bondade nos traços
faciais, o que serena meu ânimo e me traz contentamento.
Aos
poucos, retorno à minha forma atual, menos densa. Minhas feições logo perdem a
profundidade e recuperam a leveza que acredito terem adquirido neste lugar. A
metamorfose, apesar de rápida, trouxe-me do passado inúmeras vivências, que se
entrelaçaram em minha mente, confundindo-a ainda mais. Sou tomado por um
vendaval de emoções, que umedecem meus olhos.
Lágrimas
esbranquiçadas escorrem por minha face e caem em gotas dentro do rio azul.
Pequenos círculos se formam, borrando a nitidez das águas. Os círculos se
fundem e se alastram em pequenas ondas que entorpecem meus sentidos.
Experimento uma sensação de torpor.
Sinto
sono, muito sono...
Passo
a vivenciar um estado de semiconsciência. Tenho a convicção de que fui poupado
de parte da minha lucidez para meu próprio bem. Mesmo assim, continuo a chorar.
Aquela sensação de ter feito algo errado insiste em me perturbar. É muito forte
e dolorida.
O
semblante daquela jovem de feições delicadas é tudo que consigo ver à minha
frente agora. As imagens, porém, parecem distorcidas. Então, o torpor em meu
cérebro aumenta. É como um mecanismo de defesa, que tenta bloquear certas
lembranças.
–
Não se recorde ainda – uma voz me diz. – Você ainda não está preparado.
O
sono torna-se mais intenso e eu me encolho, dobrando as pernas e aproximando os
joelhos da cabeça. Sinto-me um infante, um bebê dentro do ventre materno. Antes
de adormecer, ainda vislumbro o sorriso encantador daquela mulher. Por alguma
razão, sinto necessidade de lhe pedir perdão. E de dizer que a amo.
–
Numa outra vida – a voz amiga sussurra. – Sempre há tempo para o amor e o para
o perdão.
Reconforto-me
com suas palavras. E adormeço.
Quase
em paz.
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