Ensaio: sobre coerência e ativismo social


Às pessoas tem faltado coerência. É claro, existem exceções; porém, como sabido, exceções confirmam a regra, o comportamento padrão. A polarização das preferências político-partidárias que existe no Brasil atualmente é um bom exemplo. O país está cindido ao meio e cada uma das metades é parcial ao extremo, embora ambas vejam-se como verdadeiros baluartes da justiça. Quase todos se consideram no direito de julgar, mas poucos analisam antes suas próprias atitudes, conduta basilar na vida em sociedade. Há inquisidores por todos os lados, a exigir dos outros posturas que nunca adotam, a cobrar dos demais o que jamais se dariam ao trabalho de dar. Uma incoerência que beira a desfaçatez.

Neste contexto, o errado é errado apenas quando praticado pelo outro. Se cometido o erro por alguém do próprio grupo, recebe um verniz ludibriador, é chancelado com cinismo e, algumas vezes, chega a receber elogios. Com isto, defende-se tão somente a órbita dos próprios interesses. As normas da decência e da ética, que devem reger as condutas de todos, são lembradas apenas quando surge a oportunidade de alvejar um opositor. No cotidiano, são relegadas ao esquecimento. Afinal, o “inimigo” precisa ser derrotado a qualquer custo. Em nome de uma moral superficial, valores são distorcidos e até invertidos sem qualquer escrúpulo. Mentir e manipular tornou-se fundamental. Vencer, triunfar a qualquer custo. Sobrevivência do “mais forte”, ideologia fundada em raciocínio minúsculo, que encontra pseudojustificação na alegada necessidade de derrubar os vilões oponentes, porque se acredita (ou se finge acreditar) que os vilões estão apenas do lado de lá.

A postura parcial e extremista (seja no âmbito religioso, sexual ou político), tão escancarada atualmente nas redes sociais, aleija a inteligência e confunde a razão. Em termos práticos: acirra ânimos, intensifica divergências e solidifica o ódio. Quando acolhida pelas massas como algo natural (pois corriqueiro), em pouco tempo passa a ser vista como norma de conduta e integra-se ao direito consuetudinário. Este cenário propicia a ascensão de figuras oportunistas. O povo fica à mercê de sofistas, enganadores e aproveitadores natos; a estabilidade do país oscila.

Vivemos uma espécie de retorno ao Estado de Natureza, provocado pela exacerbação de paixões que conduzem à guerra de todos contra todos, mencionada por Thomas Hobbes. Isto não significa, entretanto, que precisemos da mão pesada de um Estado Leviatã para nos salvar. Longe disso, pois este tende a oprimir sob o pretexto de colocar ordem. São exatamente os representantes do Estado, seus dirigentes máximos, aqueles que mais têm enganado e desonrado a Nação, valendo-se de táticas astuciosas e corporativistas para ocultar os crimes que ordinariamente praticam. Não seria sábio conceder mais poder àqueles que provaram incontáveis vezes, e continuam a provar, não possuírem capacidade, muito menos dignidade para exercê-lo. Os políticos em nosso país, em sua esmagadora maioria, são capazes de tudo para alcançar o poder e nele se perpetuar. Aliás, as regras que regem o exercício dos mandatos eletivos são engendradas de forma a possibilitar a utilização de vias subreptícias à prática da corrupção e à consequente multiplicação criminosa da riqueza. Pessoas movidas por boas intenções podem se filiar a partidos políticos, mas dificilmente serão selecionadas nas convenções partidárias que escolhem os filiados que concorrerão a cargos eletivos. As agremiações partidárias (comandadas de direito por estatutos, porém de fato por seus caciques) escolhem para este fim somente aqueles que aceitam serem marionetes. Por esta razão, a verdade está bem mais para “o brasileiro não tem em quem votar” do que para “o brasileiro não sabe votar”. O sistema político-partidário brasileiro esgotou-se. Faliu. Malogrou vergonhosamente. Requer urgente substituição.

Não é de se admirar, portanto, que o povo esteja indignado, todavia tem manifestado sua indignação de forma desvairada, às cegas, com os ânimos exaltados, sem se atentar aos ditames da razão. Nosso futuro está sendo escrito num clima de antagonismo e polarização, de uma raiva que deriva da sensação de impotência e que tem alcançado proporções alarmantes.

Mas... o que fazer para mudar este panorama? Como cooperar num esforço conjunto para conduzir a Nação aos trilhos do livre pensamento com respeito mútuo, da gestão proba, da convivência harmônica e do desenvolvimento pessoal e social? Tentar gritar mais alto que os duelantes por certo não é um caminho válido e eficaz. Arrancar à força os políticos do poder, por sua vez, só geraria mais instabilidades e violência. Seria um equivocado caminho rumo ao caos.

Precisamos, inicialmente, admitir uma parcela da culpa. Todos nós somos culpados, em maior ou menor grau, por ação ou omissão, pela situação atual. E agora necessitamos, mais do que nunca, de nossa criatividade para propor mudanças e de nossa coragem de colocá-las em prática. Cabe ao povo, há tanto manipulado por seus governantes, utilizar o bom senso e apresentar caminhos opcionais, ao invés de tentar reproduzir, no âmbito de suas relações, as lamentáveis condutas daqueles que gerem a coisa pública. Não podemos fazer o que compete a outras pessoas, atribuição que está além de nosso alcance, entretanto somos capazes de cumprir a parte que nos cabe. A comparação é grosseira, mas creio que devemos aplicar no âmbito social postulado semelhante ao da terceira lei de Newton. Com efeito, a adoção de padrões dignos de conduta pode ser o início da mudança, pois consubstanciará uma reação igual e contrária ao mal que tem sido praticado. Para este fim, toda prática que estimule a compreensão das ideias, o entendimento das motivações e do modo diferente de pensar do outro será muito bem-vinda. O mundo precisa de mais empatia. Devemos, assim, buscar a harmonia social, a “unidade na diversidade”.

Já que temos citado filósofos e cientistas, vale mencionar que o brilhante físico indiano Amit Goswami, autor de vários best sellers que buscam integrar ciência e espiritualidade, certa vez perguntou em um de seus livros: “O que você está fazendo para participar da criação da realidade que todos nós compartilhamos?” (O Ativista Quântico, editora Aleph). Pois bem. A questão que proponho trata, basicamente, de participarmos da criação de uma nova realidade, de um futuro onde o habitual sejam as posturas coerentes, acolhedoras, benevolentes e construtivas.

Desta maneira, por uma questão de lógica, mas também em nome de uma necessária humildade exemplar, comecemos por nós mesmos. Façamos um mergulho interior, o famoso “Conhece-te a ti mesmo” de Sócrates. Busquemos conhecimento e evolução espiritual. Amadurecimento, capacidade de compreensão da igualdade de cada um e da irmandade que une todos os seres vivos. Desenvolvimento pessoal e harmonia social podem e devem coexistir, porém o social necessita da retidão individual para florescer com vigor. É a cada indivíduo, portanto, que compete o passo inicial.

Vivamos de acordo com uma ética solidária desde as pequenas, todavia importantíssimas atitudes do dia a dia. Com sorte, os resultados de nossa mudança de comportamento serão captados por outras mentes, amplificados e retransmitidos, produzindo uma reação em cadeia capaz de anular os excessos nas dissidências e o ódio dos extremismos. Uma espécie de energia pacificadora poderá surgir. Ela será o ponto de partida de uma reconstrução social, do surgimento de novos paradigmas, de uma reengenharia da convivência. Não desconheço que isto pode soar utópico, até ingênuo, entretanto estou seguro de que é possível. Advirto que o processo tende a ser lento, com resultados graduais. Por esta razão, carece ser colocado em execução o quanto antes. Precisamos nos medicar individualmente para que toda a sociedade possa iniciar o processo de cura.

Sim, o texto deu uma grande guinada. O tom crítico dos primeiros parágrafos foi substituído por uma atmosfera mística, típica de filosofias orientais, trazida pelos parágrafos seguintes. É bem possível que, durante a leitura, na procura por soluções, o raciocínio de algumas pessoas tenha começado a enveredar por caminhos muito diferentes. Isso é bom e esperado. O importante é refletir. Desta reflexão, podem surgir propostas melhores, mais objetivas e eficientes do que aquelas que detalharei em breve, por ocasião da ampliação do texto.

Enfim, se você não se sente à vontade quanto aos rumos de nossa sociedade, se percebe que “há perigo na esquina”, como dizia o saudoso cantor e compositor Belchior, se sente no íntimo a preocupação quanto ao panorama atual, há de concordar que deve também auxiliar na procura por alternativas.

Não nos limitemos a reclamar, tampouco sucumbamos ao silêncio omissivo. Exercitemos a coerência. Edifiquemos. Pensando juntos, ainda que à distância, talvez possamos encontrar maneiras de atuar no paulatino estabelecimento da Cosmocracia idealizada pelo filósofo brasileiro Huberto Rohden.





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