Conto: A Pequena Xamã
Em um
bairro pobre, nas proximidades da Serra da Cantareira, morava Euterpe, uma
menina meiga e sonhadora. Introspectiva, ela se sentia mais próxima dos
elementos essenciais – terra, fogo, água e ar – do que das pessoas que a
rodeavam. Em contato com aqueles, sentia-se protegida; perto destas, ficava
inquieta, insegura.
A menina tinha pele e olhos muito
claros, quase transparentes, e cabelos negros finos e lisos. Estudava no
período vespertino e fazia seus deveres escolares no início da noite, sempre
torcendo por uma manhã ensolarada no dia seguinte: sem amigos da sua idade, ela
gastava um tempo considerável olhando diretamente para o Sol. Euterpe adorava
conversar com o astro-rei, falar de suas ideias, de seu modo de ver e sentir a
vida. Embora muito jovem, tinha o hábito adulto de analisar tudo e todos à sua
volta, compartilhando suas conclusões com a solitária estrela de nosso sistema
solar. Era uma menina sensível em sua personalidade e bastante frágil nas
características físicas. Para que pudesse realizar aquele ritual sem sofrer
qualquer agressão à sua saúde, a mãe lhe comprara óculos com lentes que
escureciam imediatamente ao contato com a luz solar, além de um bloqueador da
ação nociva dos raios uva e uvb.
– Muito preocupante; muito
preocupante – dizia Iracema, sua mãe.
Numa determinada manhã, de frente
aos primeiros raios solares do dia, com as lentes escurecidas de seus óculos
Euterpe sondava as raras nuvens brancas que enfeitavam o azul do céu. Fazia-o
com a mesma concentração e alegria de um astrônomo ao descobrir um planeta
semelhante à Terra. Sonhava, aliás, em ter esta profissão. Ou melhor: seria
astrobióloga, como uma cientista que vira certo dia em um documentário que seu
pai assistia. Em algumas horas, a garota estaria de volta ao colégio, porém
tudo que lhe ensinavam lá lhe parecia uma repetição, algo que de alguma forma
ela já sabia. Dèja-vu, segundo Clio,
sua professora de História, que adorava usar expressões da língua francesa. Só
o infinito, acreditava a menina, poderia lhe mostrar coisas novas; apenas o Sol
e as entidades invisíveis que habitam a imensidão do cosmos. De alguma forma,
ela sentia isso.
Mas...
se não havia nada que ela pudesse aprender na Terra, o que estaria fazendo
aqui?
Uma voz familiar interrompeu seus
devaneios:
– Tépi, venha tomar café conosco!
Agora, agora!
A garota adorava o modo peculiar de
sua mãe expressar-se, quase sempre repetindo palavras e expressões. Euterpe
estava agachada no chão; ao ouvir a melodiosa voz de Iracema, levantou-se,
sacudiu as mãos cheias de terra, pediu desculpas para a formiguinha que se
aninhara entre seus dedos, devolveu-a a seu habitat, ajeitou com pressa os
óculos e o cabelo e saiu em disparada para dentro de casa, exibindo um largo
sorriso. Com os braços abertos, ela simulava um voo. Euterpe parecia bastante
animada naquela manhã.
Um beijo no rosto da mãe, outro na
testa do pai e um pedido que os surpreendera:
– Quero ganhar um cachorrinho!
Seu pai sorriu, enquanto a mãe
expressava sua felicidade com uma lágrima solitária: a pequena Euterpe
finalmente desejava um amigo no mundo real!
Sensitiva, a menina percebeu que seu
desejo seria atendido e ficou emocionada. Os braços curtos tentaram em vão
envolver seus pais num único abraço. Ela os amava mais do que tudo e acreditava
que eles eram a única ligação que possuía com nosso planeta.
Ledo engano. Na verdade, Euterpe
estava ligada a tudo que existe, seja aqui na Terra ou em outros mundos ou
dimensões. Tudo que possui vida.
Mesmo que pareça não possuir.
******
Axaxá era um vira-lata negro de
médio porte; um tipo comum de cachorro, parecido com tantos outros que andavam
pelo bairro. Era esperto, ativo e muito inteligente. Um filhote que não custara
nada para seus pais e que rapidamente tornara-se um grande companheiro para
Euterpe.
– Um
bom amigo não tem preço – dizia Antonio, seu pai.
Um pequeno rabo que balançava
freneticamente durante a maior parte do tempo, além de uma orelha sempre atenta
(e outra que insistia em ficar abaixada) eram características físicas que
chamavam a atenção em Axaxá. Além disso, ele parecia estar sempre sorrindo: era
um cãozinho feliz. Desde o dia em que Euterpe o recebera de presente, ficara
evidente a harmonia e a cumplicidade que marcariam a relação entre eles.
Axaxá tinha apenas sessenta dias de
vida quando chegou a seu novo lar, aninhado nos braços fortes de Antonio, mas
já mostrava uma vivacidade incrível. Seus olhos, tão negros quanto ele, eram
expressivos e estavam atentos a tudo que ocorria a seu redor. E eles ficaram
especialmente encantados quando avistaram, pela primeira vez, a franzina garota
de olhos azuis espelhados. O rabo inquieto logo começou a abanar, arrancando um
sorriso da menina. Fora o começo de uma linda amizade.
Ao lado de Axaxá, Euterpe passou a
sentir-se alegre e forte. De alguma forma, ele lhe transmitia segurança. A
menina já não ficava magoada com as gozações das crianças das redondezas, que
adoravam caçoar do seu jeito diferente de ser. Tornara-se mais brincalhona,
mais sorridente. Ainda assim, continuava dedicando parte de seu tempo a
contemplações silenciosas do horizonte. A garota sentia uma atração cada vez
mais intensa pela beleza e, sobretudo, pela pureza que enxergava na Natureza.
Habituado a encontrá-la na saída no
colégio, Axaxá latia a cada minuto de atraso, ansioso por ter a amiga novamente
com ele. Seus escândalos causavam risos nos companheiros de estudo da menina e
acabaram por ajudá-la a ganhar novos amigos. Um deles era o rechonchudo
Carlinhos, garoto conversador e engraçado, que adorava o jeito misterioso da
nova amiga. Visualmente, ele chamava a atenção de todos: ninguém no colégio
tinha uma coleção tão vasta de camisetas quanto ele, mas da cintura para baixo
o menino não era nada elegante: calças curtas, que deixavam salientes suas
canelas, e sempre o mesmo tênis branco, velho e encardido, completavam seu
visual peculiar. Carlinhos era preguiçoso quando o assunto era estudo, mas se
mostrava muito disposto na hora das brincadeiras, além de ser um bom ouvinte
para as teses filosóficas da menina. Ele também adorava Axaxá:
– Mamãe não me deixa ter cachorros –
queixava-se. – Eu queria ter um tão legal quanto o seu.
– Axaxá é meu melhor amiguinho,
Carlinhos. E você é meu amiguinho número dois!
Ao ouvir aquela frase, o menino
corara. Estava desenvolvendo uma paixão secreta por Euterpe e, a partir daquele
dia, encheu-se de esperanças. Afinal, estava em segundo lugar. E o primeiro
colocado era só um cachorro... Axaxá, matutava Carlinhos, certamente não seria
um concorrente à altura caso algum dia ele resolvesse pedir a amiga em
casamento...
******
Euterpe era uma garota sonhadora,
não apenas durante o dia, mas também após adormecer. Seus sonhos noturnos
costumavam ser longos e detalhados, transportando-a para universos fantásticos.
Quando os contava aos pais, ou mesmo para Carlinhos, eles pensavam que a menina
estava exagerando nos detalhes, tamanha era a beleza das sensações que
descrevia.
– Muita imaginação; muita imaginação
– entonava Iracema, sorrindo.
Numa sexta-feira, após uma tarde
destinada a apresentações musicais no colégio, Euterpe voltara para casa radiante.
Não tivera coragem de cantar alguma de suas músicas preferidas diante dos
colegas, mas ficara encantada com tudo que ouvira. Ao lado dela, Axaxá latia
entusiasticamente, feliz por ter participado da festança e conseguido conquistar
a amizade de várias crianças.
À
noite, porém, a garota teve um sonho que ao final se mostrou intrigante. Como
estava cansada, bastaram alguns minutos para que mergulhasse no mundo dos
sonhos – o mundo dois, como o chamava
o amigo Carlinhos. O sonho foi mais ou menos assim:
Diante
de um cenário verdejante, entre morros e vales, Euterpe avistava riachos,
pássaros, árvores e flores. Embora estivesse no cume da maior elevação do
local, conseguia ver todos os detalhes daquele cenário com nitidez. A garota
estava deslumbrada com o espetáculo proporcionalidade pela flora e fauna da região.
Dentre os animais, destacava-se um boi de aparência pacata, envolto numa aura
de tonalidade azul, que pastava ao lado de uma longa estrada florida.
Sorridente,
Euterpe abriu os braços e simulou um voo, como sempre fazia, durante os
períodos de vigília, quando estava feliz. E voou. Voou de verdade! Do alto,
podia ouvir – feliz e um tanto assustada – os latidos de Axaxá, que também
estava no sonho. Desejou que ele alçasse voo também e, para sua surpresa, o desejo
realizou-se. Juntos, os dois amigos começaram a planar mansamente pela
atmosfera do lugar, dando piruetas e fazendo coreografias. A alegria de Euterpe
parecia aumentar o brilho das cores nas paisagens. A menina alcançou o animal e
lhe fez um afago, percebendo em seguida que ele podia falar. Com uma expressão
séria, Axaxá cochichou:
– Os
habitantes daqui precisam de ajuda com urgência. O Paraíso de Peabiru está
correndo perigo!
Entorpecida,
entre o sono e a vigília, Euterpe sentiu seu corpo gelar. O medo apoderou-se
dela. Acordou num sobressalto, sentou-se apressadamente na cama e, atabalhoada,
acabou dando um pequeno chute no traseiro do companheiro Axaxá, que dormia a
seu lado. Ele apenas ajeitou-se e roncou baixinho. Vendo-o tranquilo, Euterpe sentiu
um grande alívio e refletiu:
Axaxá é inteligente, mas é claro que não pode
falar. Acho que comi demais antes de dormir. Baguncei
meu estômago e tive um pesadelo.
Na
manhã seguinte, seus pais lhe contaram que planejavam, para a próxima semana,
um passeio num parque que havia na região.
– E no
próximo mês iremos à praia de São Vicente – arrematou Antonio. – Seu tio Lucas
vai nos emprestar aquele apartamentão,
para curtirmos o feriado da independência lá.
Animada,
Euterpe começou a agitar os ombros, simulando uma dança graciosa, mas
descompassada. Estava realmente se tornando uma garota mais extrovertida e
feliz.
******
O sábado que passara com os pais no
parque fora tão especial para Euterpe que ela jamais o apagou de sua mente. Um
dia ensolarado, alegre, com várias outras crianças se divertindo no lugar. Na
trilha que seguiram, a menina admirara o vigor das árvores, cruzara com
pequenos animais silvestres e avistara pássaros que considerara encantadores,
com seus cantos e coloridos típicos. Euterpe dissera para os pais que alguns bichinhos a contemplaram
demoradamente e pareciam querer se comunicar com ela. Antonio e Iracema riram,
pois julgaram que aquilo era fruto de sua imaginação prodigiosa.
Uma chuva repentina os assustara um
pouco no final do passeio, mas logo se foi, dando lugar a um belíssimo par de
arco-íris. Eles dividiam o céu com as nuvens remanescentes e com o amigo Sol,
que aos poucos recuperava seu espaço no firmamento. A garota jamais vira dois
arco-íris surgirem simultaneamente. Ficou fascinada.
Minutos depois, o pai observara que
um pássaro de colorido vermelho-telha aproximara-se da filha e pousara em seu
ombro. Era um pássaro incomum, que ele vira somente na TV. Que bela cena, pensou, fotografando-o. Em seguida, Antonio surpreendeu-se
ao perceber que a criatura parecia acariciar os cabelos da menina com seu
pequeno bico, demonstrando muita ternura. Ele tentou chamar a atenção de
Iracema para o fato, mas o pássaro alçou voo no mesmo instante. Restou apenas a
fotografia, que não fora suficiente para fazê-la acreditar naquilo que, a
partir daquele dia, ficou evidente para ele: a graciosa Euterpe de fato possuía
uma ligação especial com a Natureza.
Ao chegar a hora de se deitar,
Euterpe contou para o amigo canino tudo que vivenciara naquele dia. O cãozinho
acompanhava seus relatos com os olhos vidrados nela; parecia entender o que a
menina dizia. Num dado momento, Iracema entreabriu a porta do quarto e ficou a
observá-los por um instante. Em seguida, encostou a porta com cuidado para não
interromper a conversa e ficou reflexiva, dividida entre a preocupação e o
encantamento.
Antonio tem razão. Há algo intrigante em
nossa garotinha. De alguma forma, de alguma forma, ela é especial!
******
O primeiro sonho de Euterpe naquela
noite fora semelhante ao que tivera dias antes: um voo tranquilo ao lado do
amigo de quatro patas. Porém, desta vez havia uma sensação incômoda: era como
se alguém tentasse invadir seus sonhos. Sim, parecia haver um intruso à
espreita! A menina acordou novamente num sobressalto, sentindo um frio
percorrer sua espinha. A seu lado, desta vez, o cão estava alerta.
– Também teve pesadelos, Axaxá?
Ele latiu de forma vigorosa e
confiante, como quem está prestes a enfrentar um inimigo poderoso. Havia
crescido rapidamente e ficado mais robusto do que os pais da menina imaginavam.
Sua coragem contagiou Euterpe.
– É isso mesmo, Axaxá. Vou dormir de
novo e descobrir o que está acontecendo!
A garota dormiu e sonhou mais uma
vez. No novo sonho, ela fazia outra visita àquele local paradisíaco, onde a
fauna e a flora exibiam uma beleza inigualável. Os animais pareciam muito
tranquilos e percorriam a planície verdejante, cortada por um extenso caminho
florido, que se perdia de vista no horizonte. A paz daquele lugar, no entanto,
passou a ser ameaçada por criaturas com feições e atitudes rudes, que corriam
pela trilha desde montanhas distantes e se aproximavam com ferocidade dos
animais, empunhando armas e sacrificando-os impiedosamente. Depois, realizavam
estranhos rituais, parecendo oferecer os corpos inertes como oferendas a deuses
maus e invisíveis. Euterpe indignou-se ao ver aquelas cenas. Queria fazer algo
para impedir os massacres, mas sentia todos os seus músculos inertes. A
sensação era desesperadora.
Sem poder mover-se ou falar em seu
sonho, a menina instintivamente procurou pensar em alguma coisa que lhe
parecesse nobre. Recordou-se de algo que Antonio dissera certa vez numa
conversa com Iracema e que ficara gravado em sua mente: O Mal deve ser combatido de forma pacífica, com pensamentos e atitudes
nobres. Esta é a maneira mais sábia de enfraquecê-lo. Lembrou-se também da
intrigante ligação que sentia com a Natureza e sentiu-se mais confiante,
visualizando em seguida o pássaro que pousara em seu ombro e a pacífica figura
do boi, criaturas que tanto a encantaram. A garota tinha certeza que aquele
pacato boi possuía energias de bondade e amor que precisavam ser protegidas e
intensificadas. Euterpe logo notou que seus pensamentos produziram no céu do
lugar um par de arco-íris, tão belo quanto o que vira no parque. Instantes
depois, as criaturas de comportamento malévolo começaram a empalidecer; suas
imagens tornaram-se disformes. Parecendo enfraquecidas, eles seguiram a
estreita estrada que as trouxera até ali, indo de volta às montanhas distantes.
O mais incrível é que os animais sacrificados, enquanto aqueles seres se
distanciavam, começavam a ressuscitar!
Euterpe acordou com o coração
acelerado, mas aliviada por ter vencido aquela batalha. Logo sentiu as lambidas
de Axaxá em sua testa:
– Conseguimos derrotá-los, Axaxá!
Graças à ajuda do boi e do passarinho!
Horas depois, o rádio-relógio
despertou com uma bela melodia, que ofuscou a lembrança dos sonhos que agitaram
aquela noite. Cansada pela noite mal dormida, a menina tentava prestar atenção
aos versos declamados pelo cantor:
“Quando entrar setembro
E a boa nova andar nos campos
[...]
A lição, sabemos de cor
Só nos resta aprender...”
Era trinta e um de agosto.
******
Na noite que antecedeu o feriado da
Independência, Antonio, Iracema, Euterpe e Carlinhos puseram-se a caminho de
São Vicente. A garota há tempos acalentava o sonho de conhecer o mar e estava
radiante pela possibilidade de realizar esse desejo. O amigo Carlinhos, que
aceitara prontamente o convite de Euterpe, parecia ainda mais entusiasmado que
ela. Entre os dois, no banco de trás do conservado Maverick, Axaxá mostrava-se
um pouco agitado.
A viagem estava sendo muito
divertida, com cantorias e risadas, até chegarem à Serra do Mar, quando Euterpe
acreditou ter visualizado um dragão em meio à neblina espessa. Ele possuía um
corpo imenso, no formato da letra “s”. Sua metade inferior, sinuosa, lembrava
uma cobra. Euterpe tinha a impressão de que ele pretendia abocanhar o carro.
Assustada, a garota chamou a atenção dos outros, mas ninguém mais no veículo
enxergara o animal mítico. Seu pai, sempre sereno, procurou tranquilizá-la:
– Essa neblina às vezes engana
nossos olhos, Tépi. É como as nuvens, que parecem formar figuras.
Euterpe não se convencera. Ela sabia
discernir quando algo era fruto de sua imaginação. Não parecia ser este o caso.
Felizmente, algum tempo depois, a criatura movera-se por entre o acidentado
terreno, parecendo ocultar-se numa toca. A garota permaneceu calada e pensativa
no restante da viagem. Ficara com um mau pressentimento.
Após chegarem ao apartamento, a
preocupação aos poucos foi se dissipando e todos tiveram uma tranquila noite de
sono.
Mas o
dia seguinte... Ah, este seria muito agitado!
******
Finalmente, a praia! Enquanto Antonio passeava
com Axaxá pelo calçadão e Iracema descansava à sombra de um guarda-sol, Euterpe
e Carlinhos não paravam um instante sequer, dividindo suas atenções entre o
mar, a areia, o calçadão e os quiosques. Era inverno, mas já havia um começo de
primavera no ar. O amigo Sol, em harmonia com as condições climáticas, emitia
um calor ameno.
Após o almoço, Euterpe pediu
autorização para fazerem um passeio pelas redondezas, levando Axaxá com eles.
Depois de muitas recomendações de cuidado e atenções redobradas, os pais
consentiram.
– Leve o celular, leve o celular! E
voltem antes que escureça! – recomendou a preocupada Iracema.
E lá se foram os amigos, um pouco
cansados das andanças da primeira parte do dia, mas ainda com energias de sobra
para explorar as cercanias do lugar. No caminho, Euterpe contava a Carlinhos
detalhes sobre a imagem que distinguira na Serra do Mar, rememorando também os
sonhos estranhos que vinha tendo.
– Tenho o pressentimento de que
alguém quer se comunicar comigo, sabe? É como se algo estranho estivesse para
acontecer.
– Você se lembra das nossas aulas de
folclore, Tépi?
– Claro, Carlinhos!
– Então... O dragão que você viu...
sei lá... ele faz eu me lembrar daquele tal Dragão
da Sununga.[1]
– Ah, eu sei qual é. Mas, esse não
virava moço bonito não! – brincou Euterpe.
Nesse meio tempo, chegaram às
proximidades de uma encruzilhada. O lugar estava ermo e os garotos ficaram em
dúvida se deveriam retornar ou escolher um caminho para seguir adiante. Axaxá,
muito agitado, começou a latir. Parecia querer indicar algo à frente deles.
– É mesmo, Axaxá! É o boi bonzinho
do meu sonho!
Carlinhos também o vira. Era um boi
muito bonito, forte, que caminhava com tranquilidade na direção de uma estreita
estrada de terra que se abria à direita deles, ainda um pouco distante, em meio
a duas árvores frondosas. Tinha uma aparência pacata, o que encorajara os dois
amigos.
– Carlinhos, acho que ele está nos
mostrando um caminho.
– Tem certeza, Tépi?
– Tenho. Vamos segui-lo!
Carlinhos não pensou duas vezes em
acompanhar a amiga. Estava ficando animado com a situação. Axaxá tomou a
dianteira, embrenhando-se em meio à mata rasteira que circundava o caminho de
terra. Os dois garotos correram na direção do cachorro, tentando acompanhar seu
ritmo.
Enquanto percorriam a extensa
trilha, percebiam que ela se tornava mais bela a cada passo, exibindo flores às
suas margens, seguidas por um gramado de um verde muito vivo, que abrigava
várias árvores. Havia riachos ao entorno. O cenário, aos poucos, tornava-se
mais parecido com o dos sonhos de Euterpe. Mas havia algo errado: o silêncio.
Onde estariam os animais que deveriam povoar aquele local paradisíaco?
O boi
que os conduzira até ali também desaparecera entre as árvores, o que os deixou
apreensivos. O desespero, todavia, veio minutos depois: também o amigo Axaxá
havia sumido.
Nesse meio tempo, uma voz grave
ecoou no ambiente:
– Que bom que você veio, Tépi!
Estávamos à sua espera. E você também é bem-vindo, Carlinhos – lentamente, a
figura altiva de um negro de meia-idade surgia por detrás de uma rocha. O
semblante era amigo e sereno, tranquilizando-os. – Para verem os habitantes do
lugar, precisam se livrar dos sentimentos impuros. É preciso pureza total aqui.
Sinto em vocês ainda um pouco de medo e desconfiança. Procurem libertar-se
deles.
– Primeiro quero meu cachorrinho de
volta! – protestou Euterpe.
– Eu estou aqui, Euterpe – respondeu
o negro sereno.
Euterpe e Carlinhos não
compreenderam a princípio, porém a cena que se seguiu foi reveladora e
impressionante. Cruzando os braços e agachando-se até o chão, o negro contraiu
os músculos e fechou as pálpebras. Em segundos, seu corpo tornou-se menor, seus
membros sofreram uma metamorfose e sua pele cobriu-se de pelos. Por fim, um
rabinho alegre surgiu e começou a balançar. O coração de Euterpe disparou.
Carlinhos, trêmulo, conseguiu falar primeiro:
– Axaxá... é você? Você... é gente?
– Sim, Carlinhos. Eu estava
disfarçado esse tempo todo. Precisava encontrar uma forma de me aproximar de
Euterpe – respondeu o cão negro, metamorfoseando-se em seguida mais uma vez,
trazendo de volta a figura do homem forte.
– Mas... quem é você... de verdade?
– perguntou a garota.
– Sou conhecido como Zumbi dos
Palmares.
– Mas você morreu! – bradou
Carlinhos, sem antes refletir, recebendo um cutucão de Euterpe.
O negro sorriu:
– Sim, há centenas de anos. No
entanto, as lendas que foram criadas sobre minha imortalidade trouxeram-me a
este lugar, do qual me tornei guardião. Por séculos defendi esse paraíso e seus
habitantes, mas agora já não posso fazê-lo sozinho. Os animais estão doentes.
– Por quê? – quis saber Euterpe.
– Porque a inocência e a pureza dos
corações estão se acabando, amiguinha.
Ele
parou por alguns segundos, emocionado. Depois prosseguiu, com a voz embargada:
– Os
animais que morreram vítimas de maus-tratos vêm para cá, para terem uma
existência feliz por toda a eternidade. Os personagens das lendas brasileiras
moram em outros rincões, mas também nos visitam de vez em quando. Muitos têm me
falado que estão chateados; sentem-se esquecidos. Nosso maior problema, no
entanto, é quanto aos animais que agora residem aqui: à medida que as pessoas
deixam de acreditar no amor e de praticar atos de bondade, a magia que protege
este lugar perde a força e esses animais, que já estão mortos, voltam a sentir
as dores das chagas que os vitimaram.
Com a
cabeça baixa e os olhos embotados, ele concluiu:
– É
muito triste o que está acontecendo no paraíso de Peabiru.
As crianças, ao ouvirem o relato e
notarem as lágrimas naquele rosto marcado por cicatrizes, ficaram consternadas.
Isso fez com que seus bons sentimentos suplantassem o medo e a desconfiança.
Como resultado, aos poucos começaram a visualizar as criaturas do lugar. Eram muitas,
das mais variadas espécies, e todas padeciam de algum sofrimento físico.
Algumas até rastejavam, demonstrando dores intensas. Euterpe começou a chorar
copiosamente:
– O que podemos fazer para ajudar,
Axaxá?
– Você tem poderes de cura,
amiguinha. É o que chamamos de xamã. É a última xamã que existe em terras
tupiniquins.
Uau,
uma xamã!, pensou Carlinhos, cada vez mais apaixonado pela amiga.
– Aproxime-se deles, Euterpe.
Toque-os. Verá como pode curá-los – completou Zumbi.
Carlinhos interveio, demonstrando
preocupação:
– Só existem criaturas do bem aqui?
– Neste momento, sim. Às vezes somos
visitados por personagens lendários, seres vindos de outra dimensão. Alguns
deles parecem dominados por uma ira impressionante. Somente o sábio Cobra Norato pode explicar porque estão
tão enfurecidos. Espero que ele venha nos ajudar, se for preciso lutar. É uma
criatura muito forte e benévola.
No instante seguinte, enquanto
Euterpe aproximava-se de um coelho coxo, uma criatura monstruosa, inteiramente
recoberta por pelos, surgiu entre ela e o pequeno animal, preparando-se para
atacar a menina.
– O que é isso? – berrou Carlinhos,
desesperado.
– É o mapinguari. Há anos não o via – respondeu Zumbi, sacando da cintura
um punhal reluzente e partindo para cima do animal.
O monstro tinha aparência humanoide,
era mais alto que Zumbi e aparentava ser bem mais forte. Tinha enormes garras e
os pés virados para trás. Um golpe desferido pelo mapinguari rasgou a face do negro, mas ele se desvencilhou em
seguida e conseguiu acertar a criatura de raspão. Euterpe e Carlinhos, a seu
modo, tentavam ajudar. A garota agachara-se e juntara todas as suas forças
tentando segurar uma das pernas do bicho, enquanto Carlinhos desferia chutes que
o monstro nem sequer notava.
Mapinguari
estava levando a melhor e derrubou Zumbi, cujo rosto sangrava bastante,
atirando-se sobre ele. Euterpe gritou e fechou os olhos, mas, quando os abriu
novamente, viu que o negro conseguira atingir o umbigo da fera, causando-lhe um
ferimento profundo. Não caíra uma gota de sangue sequer da criatura, porém ela
pareceu assustar-se, desaparecendo em seguida.
– Ué, para onde ele foi? – perguntou
Carlinhos, atônito.
– Creio que voltou para suas terras,
na Amazônia mítica – respondeu o negro valente, levantando-se e limpando o
sangue do corte que, em breve, geraria uma nova cicatriz em seu rosto.
Com a respiração acelerada e os
olhos entristecidos, Euterpe questionou:
– Será que ele... morreu? – a garota
ficara com muito medo do mapinguari,
mas não queria o mal de nenhuma criatura.
–Tépi, não se preocupe. As lendas
não morrem, ao menos enquanto houver quem acredita nelas. O mapinguari só se afastou porque percebeu
que não venceria a luta. Nem dor ele sente. Sua grande fraqueza é temer a
derrota.
Euterpe ficou aliviada pelo mapinguari, mas sabia que ainda
precisaria fazer algo para curar todos os animais que jaziam naquele local. E
rápido, pois eles estavam sofrendo muito. A menina estava preocupada, pois se
tratava de um trabalho e tanto, que não sabia se seria capaz de fazer.
Nesse
ínterim, ela percebeu que perdera o celular durante a batalha: apenas um
pequeno contratempo, se comparado à importante e difícil missão que teria pela
frente. Por outro lado, por certo teria dificuldades para explicar como e onde
aquilo ocorrera...
******
– Como
você vai fazer para curar todos esses bichos, Tépi?
– Não
sei, Carlinhos, mas preciso tentar alguma coisa logo. Estou com muita peninha
deles.
Zumbi
os ouvia. Sereno, repetiu o conselho que dera há pouco:
–
Aproxime-se deles. Toque-os. Deixe que seu amor e sua pureza penetrem no corpo
de cada um.
Enquanto
falava, Zumbi apontava um local à direita deles, onde jaziam os corpos
ensanguentados de dois alazões:
– Que
tal começar por eles?
Ainda
insegura, Euterpe aproximou-se. Os animais eram fortes, mas estavam muito
castigados pelos ferimentos. O sofrimento parecia ser intenso e a menina
sentiu-se impotente diante da situação. Olhou para o céu, procurando por seu
velho amigo:
– O que
eu devo fazer para ajudá-los, Solzinho? Eu quero que eles fiquem bons logo, mas
não sou nenhuma curandeira. Sou só uma menininha...
O Sol
permaneceu calado, mas Zumbi manifestou-se novamente:
–
Acredite em você, Tépi. Acredite no seu amor.
Um
pouco trêmula, Euterpe pôs sua mão direita sobre um dos animais, acariciando
seu dorso. Duas lágrimas escorreram de seu rosto e caíram sobre o torso ferido.
A
transformação que se seguiu foi lenta, mas miraculosa. Diante dos olhos
espantados de Carlinhos e do sorriso tranquilo de Zumbi, as chagas do alazão
fechavam-se. Em poucos minutos, ele se colocou de pé. Em seguida, abaixou a cabeça na
direção de Euterpe, parecendo lhe fazer uma mesura, e depois se colocou ao lado
do outro animal, como a pedir ajuda ao companheiro. Num misto de espanto e
alegria, Euterpe tocou o outro alazão com o mesmo carinho e o idêntico desejo de
que ele se recuperasse. E o milagre operou-se novamente! Curados e agradecidos,
os dois animais saíram em disparada pelo imenso gramado, esbanjando vitalidade.
Um sorriso iluminou o rosto de Euterpe. Suas lágrimas secaram.
Com
Carlinhos e Zumbi ao seu lado, a menina procurou pelo coelho coxo, que havia se
afastado do local, com medo do mapinguari.
Encontrou-o atrás de uma pequena moita e o curou com um afago. Depois, iniciou
uma peregrinação de horas pelas redondezas. Um a um, todos os representantes da
fauna do local recebiam os cuidados de Euterpe, recuperando a saúde e a
alegria.
Entre
os habitantes do lugar, havia uma pequena raposa que não cansava de se queixar,
procurando por Euterpe seguidas vezes. Ela podia falar. E falava
desmesuradamente:
– Fui
atropelada, sabe? Quando você me agrada, as dores melhoram, mas voltam em
seguida. Acho que você precisa me adotar, cuidar de mim para sempre. O que você
acha? Leve-me com você para sua casa!
–
Raposinha, acho que estou te conhecendo. Não seja tão carente, isso cansa as
pessoas! Seja uma raposa boazinha e as pessoas vão gostar de você naturalmente
– ponderou Euterpe.
– Saiba
que carência demais é egoísmo – completou Zumbi.
A raposa carente, que se infiltrara em
meio aos animais maltratados, ficou um pouco chateada por terem lhe chamado a
atenção, mas acabou compreendendo que não tinha o direito de monopolizar o
carinho dos outros. Depois de brincar um pouco com Carlinhos, embrenhou-se no
meio das árvores, arisca e saudável.
Ao
final de algumas horas, Euterpe e Carlinhos estavam cansados, mas felizes, por
verem a alegria sendo devolvida à maior parte dos habitantes do lugar. Zumbi
também era só sorrisos. Quando a noite chegou, ele procurou acalmar as
crianças:
– Não
se preocupem quanto ao horário. O tempo aqui é diferente. Garanto que vocês
estarão de volta ao seu mundo antes que escureça por lá.
Euterpe,
na verdade, estava tão concentrada em curar os animais, que não percebera que a
noite chegara naquele lugar. A seu lado, o amigo Carlinhos a admirava cada vez
mais. Vendo que sua bondade e pureza devolviam às criaturas o bem-estar,
perguntou para Zumbi se ele também poderia fazer aquilo.
– Não
custa tentar, Carlinhos. Sugiro que tente com um animal que tenha ferimentos
menos graves.
Carlinhos
animou-se com a possibilidade e começou a caminhar em direção a algumas árvores
imponentes que se erguiam ao lado do maior riacho das redondezas.
Vou procurar um bicho pequeno. Um bicho pequeno e com um machucado
minúsculo!, matutou o engraçado Carlinhos.
Depois
de andar por alguns minutos, deparou-se com uma árvore de aparência muito
simpática. Em um de seus galhos, havia um pássaro de colorido vermelho telha,
que parecia acabrunhado. O excesso de peso do garoto não lhe permitia muita
agilidade, por isso foi com muito esforço que ele conseguiu subir na árvore e
alcançar o pássaro. A criaturinha assustou-se, mas não teve como fugir, pois
tinha uma de suas asas feridas.
Deve ter levado uma estilingada e tanto, pensou o menino.
Carlinhos
notou o sofrimento e ficou compadecido. Aproximou sua mão esquerda com muito
cuidado, até conseguir segurá-lo. Não sabia o que fazer. Apenas olhava para o
bichinho. O bichinho olhava de volta para ele, estático e assustado. Foi então
que o menino teve a ideia de aproximar seus lábios do pássaro e beijar a asa
ferida.
A
delicada criatura fechou os olhos por um instante (que pareceu uma eternidade
para o garoto, pois ele estava ansioso para ver se teria êxito). Pouco depois,
diante dos olhos do menino, a pequena ferida foi se curando lentamente, até não
restar nenhum resquício dela. O pássaro bateu as asas com alegria e em seguida
entoou uma melodia muito harmoniosa. Seu canto era tão belo que todos os seres
de Peabiru silenciaram para ouvi-lo. Carlinhos chorou de emoção e alegria.
Estava orgulhoso de si: curara um uirapuru!
Por minutos, ficou admirando o pássaro cantor, feliz da vida.
A
alguns metros dali, a tranquilidade do lugar foi interrompida mais uma vez. Um
bicho ainda mais assustador que o mapinguari
surgira às costas de Zumbi, golpeando sua cabeça. Tomado de surpresa, o negro
caiu. A criatura parecia caçoar dele. Pulava e requebrava, num bailado
desajeitado. Sua aparência metia medo: tinha dentes grandes e muito afiados.
Seus olhos, nariz e ouvidos emitiam chamas e fuligem, como se estivessem em
ebulição.
Euterpe
correu em defesa do amigo Zumbi, mas sua estratégia de combate não era nem um
pouco eficaz: ela tentava bater na criatura com suas pequenas mãos, mas nem
sequer conseguia alcançá-la. O bicho, conhecido como cabra-cabriola, apanhou Euterpe com uma de suas mãos sem qualquer
dificuldade. Parecia querer devorá-la. Zumbi ainda tentou deter a criatura,
pulando sobre suas costas e tentando fazer com que soltasse a menina. Aos
berros, a cabra-cabriola atirou
Euterpe para longe e conseguiu reagir ao golpe do negro, puxando-o pelos braços
e jogando-o por cima de seu corpo. Zumbi caiu de costas no chão, parecendo
inconsciente.
Carlinhos
chegara ao local esbaforido. Vendo os dois amigos prostrados no chão,
desesperou-se. A barulhenta criatura correu na direção de Euterpe. Carlinhos
arregalou os olhos, juntou coragem e correu para tentar detê-la. Agarrou-se a
uma de suas pernas e deu-lhe uma mordida. O bicho soltou um uivo fenomenal, mas
não desistiu da batalha, livrando-se de Carlinhos com um pontapé. Ainda zonzo,
Zumbi conseguiu levantar-se e alvejou a criatura com um soco forte e certeiro,
que a deixou tonta. Cobra Norato,
atraído pelo barulho, saíra das águas do riacho, ainda em pele de cobra,
rastejando-se até o local. Encarou a cabra-cabriola
e armou o bote. Ferida, e vendo-se cercada, a cabra-cabriola afastou-se, cambaleando um pouco, até desaparecer no
horizonte.
Fora um
árduo combate.
Com a
ajuda de Cobra Norato, agora já
despido da pele de cobra, e de Zumbi, Euterpe e Carlinhos conseguiram se
levantar. Felizmente, os ferimentos não haviam sido graves. Juntos, os quatro
caminharam pelos cantos restantes do lugar, enquanto Euterpe curava os animais
que ainda estavam adoentados.
– Por
que o mapinguari e a cabra-cabriola nos atacaram? – quis
saber Carlinhos.
Foi Cobra Norato quem lhe respondeu:
– São
mais vulneráveis às energias ruins que dominam o mundo atualmente do que os
outros animais mitológicos. Não são maus por natureza, apenas ignorantes. Podem
se tornar criaturas bondosas algum dia.
As
crianças ficaram animadas com a possibilidade daqueles seres assustadores se
tornarem amistosos no futuro. Olharam-se e, embora vendo-se sujas e abatidas,
exibiram um sorriso esperançoso.
Duas
horas depois, o trabalho estava finalizado. Todos estavam exaustos, porém
aliviados e muito felizes. Tinham a nobre sensação do dever cumprido.
Porém,
chegara o difícil momento da despedida.
******
– Tépi,
querida, muito obrigado por sua preciosa ajuda! Você não imagina como me sinto
honrado por tê-la conhecido e convivido por tantos meses como seu cachorro de
estimação. Jamais me esquecerei de você, de sua bondade e do amor que sempre
compartilhou. Nem de você, Carlinhos. Você é um bom menino!
– Eu te
amo, Axaxá! – exclamou a menina, tentando em vão enxugar as lágrimas que
rapidamente se formavam.
– É
exatamente por ter tanto amor que você é tão especial, menina – interveio Cobra Norato, que agora trajava um belo
terno branco.
–
Obrigada! – disse a doce Euterpe, com a voz bastante embargada. – Obrigada aos
dois! – e, dirigindo-se a Zumbi, questionou:
–
Então... você não volta mesmo comigo?
– Não
posso, Tépi. Sou o guardião deste lugar e não mais me é permitido ausentar-me
daqui. Mas vocês poderão me visitar sempre que quiserem. E lembrem-se: os animais que sofreram
maus-tratos estarão seguros aqui apenas enquanto existir alguma bondade e
inocência no mundo. Estão curados agora graças a vocês, mas, se a maldade
continuar triunfando, eles serão afetados novamente. Então, Tépi, temo que você
tenha que voltar aqui outras vezes, inclusive depois de adulta.
– Os
homens precisam aprender a lição do amor e do respeito aos animais – ponderou Norato.
Ouvindo-o,
Euterpe lembrou-se da canção de Beto Guedes, que falava sobre uma lição que
precisava ser aprendida. Apenas não percebera que ela era a boa nova a andar
pelos campos...
– Eu
virei sempre que for preciso! – bradou ela, com o brilho do amigo Sol refletido
em seus olhos cristalinos.
No
instante seguinte, um garotinho que galopava um belíssimo cavalo aproximou-se
do pequeno grupo de amigos. Ele saltou da montaria com agilidade, trazendo um
celular nas mãos. Andou com timidez na direção de Euterpe e entregou-lhe o
objeto, de forma reverencial:
– Acho
que este objeto lhe pertence, sinhá – disse o menininho educado, que era negro
como breu. – Ah, e fique tranquila, pois trato muito bem meu amigo baio.
– Negrinho do pastoreio! – gritou
Carlinhos. – Você é minha lenda preferida! – e correu para abraçá-lo.
Euterpe
também abraçou o negrinho, beijando sua bochecha em agradecimento. Nem havia
percebido que perdera seu celular no caminho.
Antes
que os garotos partissem, Zumbi metamorfoseou-se novamente em Axaxá, permitindo
que Euterpe o tomasse nos braços mais uma vez. O cachorro abanava o rabo
freneticamente.
Euterpe
cobriu de beijos o grande amigo e, depois de colocá-lo de volta ao chão,
fez-lhe um último afago. Instantes depois, ele voltou a ser Zumbi. O negro
fez-lhe uma mesura, em agradecimento, com os olhos umedecidos.
Em
volta do pequeno grupo, vacas, galinhas, veados, pombos, gatos e muitos outros
animais foram se juntando. Todos queriam se despedir das crianças que vieram de
outra realidade para lhes devolver o bem-estar. Um momento de muita harmonia e
felicidade, que jamais seria esquecido.
A
partir daquele dia, os moradores do litoral paulista passaram a contar a lenda
da menina franzina, que tinha o poder de curar os animais com um simples toque
de suas mãos.
Ou de
suas lágrimas.
******
Ainda
muito emocionados, Carlinhos e Euterpe retomaram o caminho florido de Peabiru,
de volta à bela São Vicente. Em alguns momentos, falavam com entusiasmo sobre o
que haviam vivenciado nas últimas horas; noutros, apenas compartilhavam a
reflexão e o silêncio.
Num
dado momento, esforçando-se para superar a timidez, Carlinhos cerrou os olhos
com força e tocou a mão da amiguinha. Ele não tinha mais dúvidas de que estava
mesmo experimentando sua primeira paixão. Euterpe corou, mas retribuiu o gesto.
De mãos dadas, eles caminharam até as proximidades do fim da trilha. Foi quando
o menino murmurou com carinho:
– Você
é minha princesinha xamã.
– E
você agora é meu amiguinho número um neste mundo.
Com um
enorme sorriso nos lábios, Carlinhos lembrou-se de agradecer a certo passarinho
cantor, ao qual fizera um silencioso pedido:
Obrigado, uirapuru!
Uma
aura de luz formou-se ao lado deles, dela ressurgindo o boi santo[2],
que os acompanhou com serenidade. Ao chegarem próximos ao final do caminho mítico,
sua imagem aos poucos começou a perder nitidez, até desaparecer por completo
quando as crianças vislumbraram no horizonte a praia. O boi cumprira sua última
missão, indicando-lhes o caminho de Peabiru e ajudando-os a retornar em
segurança. Agora poderia retornar ao seu descanso.
Ele
ficará em paz.
Como
todos os animais merecem ficar.
[1] O Dragão da
Sununga, personagem pouco conhecido da mitologia nacional, foi mencionado por
Washington de Oliveira na obra Ubatuba, Lendas e Outras Estórias
(Edição do Autor; 1983).
[2] O boi santo também é um personagem
pouco lembrado do folclore nacional. Sua lenda foi contada por Nicanor Miranda, no Diário de São Paulo, em 08 de novembro de 1959.
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