Cérebro e Coração (conto dedicado ao cerebral futebolista SÓCRATES)
Foto: Jorge Duran/ATP
Max, meu irmão caçula,
é obcecado por hábitos antigos. Muito
antigos, devo dizer. Em seu simulador de
experiências, costuma elaborar e participar de programas nos quais se disputam as chamadas Olimpíadas. Disse-me, com incompreensível orgulho, já ter obtido
medalhas em algumas modalidades esportivas.
Ele utiliza com
frequência uma palavra inexistente na Enciclopédia
Galáctica para designar o resultado da forma voluptuosa que conferiu a seus
músculos: sarado. Contou-me certa vez
que este termo é oriundo de uma subespécie vocabular conhecida como gíria e que estava ligado ao gosto que
os habitantes de alguns séculos
primitivos tinham por cultuar o condicionamento físico e a hipertrofia
muscular.
Eu me diverti
bastante quando Max explicou que
aqueles trogloditas procuravam
expandir sua musculatura aos extremos. Custo a acreditar que os antigos viam beleza naquilo: desfrutavam
de uma fração mínima de seus intelectos e, ainda assim, estavam mais
preocupados em desenvolver os músculos do que o potencial encefálico
adormecido.
Bárbaros!
Dentre os esportes
que meu irmão gosta de simular, o que
mais lhe atrai é uma contenda coletiva conhecida pela designação futebol. Ele atribui elevada importância
a esse esporte. Chegou ao extremo de determinar a nosso materializador que produzisse um complexo mecanismo de treinamento.
Trata-se de estranhas geringonças, com a ajuda das quais ele pratica uma ampla
variedade de exercícios físicos e de apuração técnica.
Estou me preparando para a simulação de uma nova edição
da Copa do Mundo de Futebol, confidenciou-me certa vez, sem que eu compreendesse
muito bem o que significava aquilo.
A verdade é que a
civilização do início do século vinte e seis não guarda registros dos
comportamentos imaturos das antigas eras, apenas de suas atividades relevantes
– obviamente, aquelas capitaneadas pelo cérebro. Para o bem da evolução da
espécie, aqueles tempos de desperdício de energia foram sepultados por nossos
historiadores. Somente em alguns nichos da antiga internet é que se consegue encontrar registros da verdadeira selvageria que os contemporâneos da Era Olímpica nominavam atividades esportivas. Max é um dos chamados saudosistas – um pequeno grupo de
desajustados que cultua os hábitos antigos.
– Não é saudável que
o corpo humano continue se atrofiando. A não
utilização do potencial muscular está transformando os seres humanos em
criaturas raquíticas – desabafou ele.
– E a “não
utilização” de todo o potencial cerebral tornava os antigos prisioneiros de atividades patéticas e que nada
acrescentavam ao saber – rebati, com o ar de autoridade que todo irmão mais
velho deve possuir.
– Venha comigo! –
disse-me ele, num repente emotivo. – Participe da simulação que preparei hoje: uma peleja entre a seleção da Sudamérica
e uma esquadra de alienígenas cascudos.
Imaginei-nos, a
princípio, em contendas corporais com répteis quelônios. Originários,
provavelmente, do sistema estelar Alpha
Centauri C. Entretanto, habituado com o linguajar maculado de meu irmão e
com sua predileção por antiquadas práticas esportivas, soube questioná-lo de
forma adequada:
– O tal futebol?
– Sim! – bradou ele,
com empolgação.
– Não vou desperdiçar
meu tempo com diversões acéfalas!
– Você atuará apenas
como expectador. Não precisará entrar em
campo. E... Pense bem, mano[1]:
como você pode dizer que uma atividade é acéfala sem ao menos tê-la presenciado
uma vez? Não seria inteligente, não é
verdade? E fique sabendo que, embora as qualidades físicas sejam muito
importantes num jogo de futebol, o raciocínio dos jogadores também é. Isto
sem contar toda a parte estratégica, previamente elaborada por especialistas.
Vi-me diante de
argumentos invencíveis. Tive que ceder.
******
–
Nova simulação! – ordenou Max ao seu
brinquedo favorito, que se perfectibilizava em uma pequena circunferência
prateada, capaz de simular realidades
alternativas e projetá-las no centro de nossa sala de estar.
–
Inserir coordenadas – solicitou o aparelho de tecnologia quadrimensional, com sua voz doce de meretriz apaixonada. Só mesmo Max para comutar a voz de um equipamento
tão caro...
–
Amistoso futebolístico entre a Sudamérica e os Battolls, de HD 40307g –
respondeu prontamente o caçula da família.
Era
de conhecimento comum, entretanto, que os Battolls
não passavam de hominídeos primitivos. Tangenciavam o irracionalismo.
–
Estes seres sabem jogar futebol? – objetei.
–
É uma simulação. Entre no clima!
Entre no clima? Estranhei a expressão,
mas apenas por uma fração de segundos. Por certo, mais uma vez meu jovem irmão
imitava a linguagem coloquial dos séculos
primitivos. E este não era o único vício que desenvolvera: habituara-se
também a projetar imagens mentais de estranhos sinais, uma forma de comunicação
não verbal constituída por caracteres
tipográficos. Segundo Max, eles
transmitiam emoções e eram muito utilizados em diálogos na antiga internet. Uma tolice. Eu jamais me
expressaria utilizando tão pueril jargão.
A
máquina interrompeu meus devaneios:
–
Em que Estádio deseja jogar, simulante?
– questionou ela, agora com voz descaradamente sensual. Parecia a anfitriã de
um bordel virtual.
–
Defensores Del Chaco, na Província do Plata! – a voz de Max já
estava acelerada pela ansiedade. – Meu irmão Guilherme será um expectador. Coloque-o na Tribuna de Honra do Estádio.
Intervi:
–
Já que vou participar desta sandice, desejo ser alguém mais importante do que
um mero expectador. Farei parte da equipe Sudamericana
também.
–
Vai conseguir correr? – zombou Max.
–
O condicionamento físico não está incluído na simulação?
–
Em tese sim, mas eu jogo sempre no modo realístico.
Se você quiser integrar a equipe, terá que contar em parte com o seu próprio preparo físico. – Ao final desta frase,
pude ver um sorriso irônico sendo esboçado na face do adolescente brincalhão.
–
Ora, é evidente que eu não tenho condições musculares adequadas para participar
desta barbárie! Ainda mais contra os trogloditas
dos Battolls!
–
Eles terão sua força física reduzida em vinte por cento.
–
Ainda assim serão mais fortes e mais altos. Sem contar o par de braços a mais.
–
O futebol é jogado com os pés – gracejou Max.
– Ei, espere aí!
Naquele
momento, identifiquei um brilho nos olhos de meu irmão, típico das ocasiões em
que lhe surgia uma ideia mirabolante,
por óbvio alguma excentricidade da qual a inteligência aconselharia não
participar.
–
Simulador, meu irmão Guilherme será o treinador da equipe Sudamericana.
Executar programa.
–
O que é um treinador? – questionei,
alvoroçado.
–
É o mesmo que diretor técnico.
–
E o que, pelas focas de Encélado,
significa diretor técnico? – berrei a
plenos pulmões.
–
Significa que você não vai precisar correr. Só ficar nervosinho e gritar. E você é bom nisso! – foi sua sorridente
resposta.
Tentei
objetar, mas era tarde demais. A simulação
já estava em andamento.
******
Um facho de luz
branco-perolada formou-se a partir do chão, no centro da sala, chegando ao
teto. Tinha cerca de um metro e meio de diâmetro. Max adiantou-se e, com um movimento de cabeça, convidou-me a também
entrar. Hesitei, mas culminei por embarcar em seu sonho juvenil.
Nos
primeiros segundos, nada aconteceu. Apenas estávamos dentro de um raio de luz,
experimentando a sensação de que a temperatura lá dentro era um pouco mais alta
do que o padrão para ambientes domésticos. Foi então que Max solicitou os controles à máquina:
–
Fornecer estimulante número um. – Uma
pequena névoa azul formou-se à frente de nossos olhos, adquirindo um estado
próximo à solidez. Max tomou-a em
suas mãos, moldou-a com os dedos e a acoplou na borda de uma orelha.
–
Fornecer estimulante número dois. –
Seguiu-se o mesmo processo. – É com você, mano!
Apanhei
o pequeno aparelho em minhas mãos, notando que sua consistência era gelatinosa.
Imitei o procedimento adotado por meu irmão.
Em
uma fração de segundos, uma nova realidade começou a ser formada ao nosso
redor. O cenário holográfico expandiu-se com celeridade para produzir a
encenação programada por meu irmão. Uma paisagem florida, típica do início do
século vinte e dois, foi a primeira imagem produzida pelo simulador de experiências a ganhar vida. Uma admirável visão!
Confesso:
estava começando a ficar impressionado com a magnitude daquela brincadeira.
******
Ingressamos
em um hotel. Segundo Max, o melhor
que existia na cidade de Assunção
naquela época. Ao chegarmos ao local, um cidadão que se autodenominou coordenador aproximou-se às pressas e
entregou-me um holovídeo. O homem
estava agitado. Disse-me que aquele material continha filmagens de atuações
esportivas de nossos antagonistas.
– Todos os jogadores
estão recebendo cópias deste material, treinador
– foi o que me disse, com visível dificuldade para conter sua tensão.
Assisti ao vídeo com
os olhos arregalados. Minutos depois, chamei meu irmão no rudimentar aparelho
de comunicação que nos foi fornecido. Assim que sua imagem holográfica apareceu
em minha frente, falei em ritmo acelerado:
– Você viu o porte
físico daqueles gigantes, Max? Além
de serem mais altos do que os humanos, já lhe disse que eles possuem dois pares
de braços! E notou a grossura das pernas deles? Como poderemos vencê-los?
–
Não será uma luta livre, professor. Será “futebol” – respondeu, dando ênfase à palavra final.
Ele me chamara de professor, uma alcunha muito utilizada
pelos chamados boleiros dos séculos
vinte a vinte e dois. Aquela postura demonstrava que meu irmão já estava com
todas as suas energias concentradas no jogo.
Decidi mergulhar de
vez em sua fantasia. Com ressalvas, entretanto:
– Você pode sair
machucado disto? – perguntei-lhe em separado um pouco mais tarde, num momento
em que o veículo denominado aeróbus
nos deixava às portas do Defensores Del
Chaco.
– Não muito. Fique frio, mano. Lembre-se: é apenas uma simulação.
–
Por que devo ficar com frio? Por que o inverno está chegando?
Meu
irmão esforçou-se para conter o riso:
–
Não, nada disso. É apenas mais uma gíria,
só isso. Agora precisamos nos separar. Em alguns minutos você fará uma preleção.
–
Mas eu nada sei sobre futebol! – protestei.
Um
protesto vão.
******
Eu subestimara a
capacidade de Max como programador de experiências. Ele soubera
programar os estimulantes neurais com
astúcia, inserindo em nossas mentes os conhecimentos necessários para um desempenho
satisfatório como futebolistas. Eu
fui um bom palestrante, demonstrando até certa segurança e desenvoltura perante
os atletas de nossa equipe. No momento oportuno, as palavras adequadas acabaram
surgindo em minha mente. Achei a experiência curiosa e interessante.
Estas foram as
primeiras orientações que transmiti aos jogadores:
Quando no ataque, nem pensem em alçar bolas na área. Os
zagueiros Battolls são mais altos e irão levar sempre a melhor nestas jogadas.
Procurem confundi-los com tabelas rápidas e, ao realizarem jogadas pela linha
de fundo, prefiram complementá-las com cruzamentos rasteiros.
Os atacantes do adversário são quase tão altos quanto
seus zagueiros; portanto, quero que, quando estivermos na defesa, nossos
meio-campistas auxiliem os alas na marcação. O objetivo é evitar que bolas
sejam levantadas em direção à nossa área. Notem: é muito importante não lhes
ceder escanteios!
Devo admitir:
instruções óbvias, porém vocês hão de concordar que abordei tópicos
importantes. Nada mal para um marinheiro
de primeira viagem.
Perdemos aquele jogo
por três gols a zero (dois gols originados nas malfadadas cobranças de
escanteios), mas a experiência fora proveitosa. Nossa equipe conseguiu realizar
bons ataques, mas não fora capaz de suplantar o goleiro Agnew, com seus dois metros e vinte centímetros de altura (e,
claro, o tal par extra de membros
superiores).
Fiquei
tão intrigado com aquela simulação
que decidi pedir a meu irmão que programasse outras semelhantes. Ele atendeu
meu pedido. Juntos, nos divertimos como não fazíamos desde sua infância. Max simulava
atletas habilidosos; eu, um eficiente treinador.
Foi muito bom ter vivenciado aqueles momentos de harmonia com Max; aquilo fez como que eu me lembrasse
do quanto somos amigos, apesar das repetidas discussões.
Ao final de uma das simulações, ele decidiu me fazer uma
proposta:
–
Mano, você ainda é jovem. Tem vinte e
sete anos apenas. Treinadores
costumam ser mais velhos. Você tem idade para ser atleta. Não quer jogar a Copa Galáctica de 2502 ao meu lado?
–
Dentro das quatro linhas? –
exaltei-me.
–
Hum... Vejo que você já está se
adaptando ao linguajar futebolístico.
Sim, dentro das quatro linhas! Já
pensou como seria divertido jogarmos no mesmo time? Venha compor o quadrado mágico comigo!
–
No meio de campo, onde jogam aqueles atletas que você nomina de craques? Perdeu o juízo, Max? Outra coisa: você disse que fará a simulação da Copa daqui a quinzes dias. Como eu conseguiria adquirir um bom
condicionamento físico em tão pouco tempo?
–
Darei um jeito. Vou preparar uma programação
na qual você será o cérebro do time, aquele cara que não precisa correr muito, mas
necessita ter boa visão de jogo. Será
perfeito para você.
Senti
uma pontada no peito; uma emoção que misturava medo e ansiedade. Mais tarde,
procurei obter informações acerca de alguns atletas “cerebrais” que Max citara. Encontrei vídeos de algumas
de suas atuações.
E
fiquei encantado com o que vi.
******
Preparamos
juntos as simulações para a Copa Galáctica de 2502. Max fez alguns ajustes na programação do
simulador de experiências, buscando
tornar o jogo mais dinâmico e as emoções ainda mais intensas.
A Copa teria a participação de cinco
equipes da Terra e vinte e sete esquadrões
alienígenas. O local escolhido para a competição foi uma planície marciana,
região que o simulador de experiências
soube transformar em um imenso Estádio de
Futebol. Em sua face exterior, o Monumental
possuía aparência insectoide, com a
predominância de uma tonalidade ferrugem um tanto assustadora. A cobertura, por outro lado, trazia
motivos marítimos, com representações de feras marinhas semelhantes àquelas
encontradas nas luas Europa e Titã.
Desta feita, ao invés
dos antiquados aeróbus, as equipes
chegariam ao local do evento em modernas naves-foguetes.
Perguntei a Max sobre o efeito que a baixa gravidade
de Marte poderia exercer sobre os jogadores, mas ele disse ter programado o simulador de uma forma que todas as
espécies sentir-se-iam plenamente adaptadas às condições atmosféricas do
planeta vermelho, como se o habitassem. Uma sábia decisão.
Eu começava a sentir
orgulho de meu irmão sonhador.
******
Meu coração disparou
quando o árbitro (uma espécie de sapo gigante) soprou o apito pela primeira
vez, determinando o início de nossa participação na Copa Galáctica. Na ocasião, enfrentamos o selecionado africano.
Com
o decorrer dos primeiros minutos, os exercícios musculares começaram a fazer
com que meu corpo liberasse endorfina,
transformando em prazer a tensão que me dominava durante os instantes iniciais.
A partir de então, passei a vivenciar todas as emoções de um verdadeiro jogador de futebol. Procurei aliar a meu
débil condicionamento físico os
conhecimentos técnicos que adquiri durante minhas simulações como treinador.
Aos poucos, senti-me mais à vontade dentro de campo, conseguindo ser o jogador cerebral que meu irmão planejara
que eu fosse. Não me movimentava muito em campo, mas era autor de passes certeiros e belos lançamentos em profundidade.
Durante
este primeiro jogo, eu converti uma penalidade em gol. Vencemos por três gols a
dois. E eu confesso ter me divertido muito com aquela disputa. Apesar de todo o
cansaço pós-jogo, estava me sentindo
bastante animado. Convenci-me de que aquele esporte estava no meu sangue;
impregnado de alguma forma em meu DNA há gerações.
O
torneio prosseguiu nos dias seguintes e eu me sentia cada vez melhor adaptado à
minha função de cabeça pensante do meio de campo. Como nosso cansaço não
era tão intenso quanto teria sido em um jogo real, pudemos simular uma nova partida a cada dois dias. Para minha surpresa,
após uma derrota na primeira fase (para criaturas conhecidas como incas venusianos, “ressuscitadas” por Max de uma antiga série de ficção
científica), nós vencemos todas as partidas seguintes, chegando por fim à
disputa do título.
–
Podemos nos sagrar Campeões Galácticos de Futebol, Mano! Não é incrível? – comemorava Max.
Eu
estava considerando tudo aquilo muito interessante e a maneira como meu irmão
levava a competição a sério chegava a me emocionar. Eu pude ver o brilho da
expectativa em seus olhos desde a véspera da simulação da Grande Final.
Decidi que faria tudo
que estivesse ao meu alcance para ajudá-lo a conquistar o título que ele tanto
desejava.
******
–
Dê o melhor de si hoje, Mano. Meu personagem sofreu uma contusão muscular, mas ficará à
disposição do treinador no banco de reservas. Conto com sua
habilidade e visão de jogo para vencermos este duelo! – disse-me ele pouco
antes de ingressarmos no programa
para darmos início à disputa derradeira.
Tive
uma espécie de surto ao ouvir aquilo:
–
Altere a programação, Max! Crie uma
espécie de faz-de-conta, no qual seu
personagem está em perfeitas condições
físicas.
–
Trapacear? De jeito nenhum. E eu não trapaceio nunca!
É
claro que ele estava certo. Mais uma vez, senti orgulho de ser irmão de Max. Uma pena não poder contar com ele
ao meu lado na Grande Final (por
coincidência, um reencontro com a equipe dos Battolls).
–
Prepare-se para emoções inesquecíveis – disse ele. – O simulador de experiências vai rodar o programa daqui a vinte minutos. A
bola está com você agora. Lembre-se: estarei no banco de reservas, com os dedos cruzados. Não me decepcione, Guilherme.
Max me chamou pelo meu nome, o que era
algo próximo de um milagre. Sinal de que estava realmente falando sério.
Muito sério.
******
Éramos
considerados favoritos pelos jornalistas simulados,
pois jogáramos melhor durante toda a competição. Todavia, a seleção adversária
também era forte. E não apenas no aspecto físico: alguns daqueles brutamontes eram habilidosos com a bola
nos pés, principalmente seu capitão,
conhecido pelo codinome Dan.
Por
volta dos dez minutos de jogo, o centroavante alienígena disparou um chute que
passou muito perto da trave direita de nosso goleiro Darrel. Aquilo foi o que alguns cronistas esportivos da antiguidade
chamariam de tirar tinta da trave.
Logo vi que precisávamos encaixar um bom ataque. Somente assim imporíamos
algum respeito nos gigantes de HD 40307g.
Concentrei-me ao
extremo a partir de então e mergulhei de tal forma naquela encenação, que algo
afetou minha percepção daquele jogo para sempre. Hodiernamente, quando me
recordo das jogadas mais marcantes da Grande
Final, cada quark de meu corpo
reage a elas como se tudo estivesse acontecendo neste exato momento. Meu coração acelera além de cem batidas por
minuto, meus poros transpiram... É incrível!
Portanto, não se
espantem com as alterações nos tempos verbais que se seguirão em meus relatos,
com as idas e vindas entre presente e passado na minha percepção dos
acontecimentos. Creio que este comportamento é consequente às emoções que
ficaram impregnadas em minha mente.
Outro importante
ponto a ser mencionado: perdoem-me, mas notarão que uso com frequência o pobre linguajar futebolístico quando estou sob
o efeito desta patologia psíquica.
******
Pode
ser agora! Manuel tem a bola pela
direita do ataque. Aproximo-me para receber o passe, mas ele prefere fazer a
jogada com Francesco. Noto uma
desatenção na defesa alienígena e me desloco adiante, buscando as imediações da
grande área. Francesco percebe minha
movimentação e alça a bola em minha
direção. Consigo dominá-la no peito com classe, impulsionando-a a minha esquerda. Tenho a visão do gol
a minha frente e noto que a oportunidade é muito boa.
Vou arrematar; vou fazer o gol!
Desfiro
um petardo de canhota, mas a bola explode na trave direita, dirigindo-se
em seguida para o lado esquerdo do nosso ataque. Um zagueiro corre em direção a ela. Está mais próximo dela do que
eu, mas consigo dar um bote e
dominá-la, girando com rapidez minha cintura (por sorte, os Battolls são um pouco lentos) e buscando
me posicionar adequadamente para efetuar um bom cruzamento. Vejo que todos os nossos atacantes estão sob marcação dos grandalhões, então tento um chute direto ao gol, mirando o ângulo
superior esquerdo da cidadela
inimiga. E...
Ah! Se não fosse a existência de um segundo par de membros
superiores, Agnew não teria
conseguido desviar aquele chute para escanteio!
Enquanto
um lance termina em arremesso lateral, uso uma fração de segundos para refletir
sobre o altíssimo nível do jogo. Os Battolls começaram melhor, porém aos poucos
conseguimos equilibrar a disputa. E eu preciso fazer mais uma confissão aqui:
aquela, sem dúvidas, era a mais realística e empolgante simulação que havíamos feito.
Que partida!
Temos
mais uma jogada pelo lado direito agora. É o ala Gonçalo que está apoiando o ataque! Ele faz um passe para
Francesco, na altura da intermediária
alienígena. A jogada prossegue com uma tabela rápida entre Francesco e Villar (o
substituto de meu irmão), até que Villar
encontra Dos Santos bem posicionado, sem qualquer pressão do adversário.
Ele adentra a grande área e Villar o
aciona com precisão.
– Vai, Dos Santos! – grito a plenos pulmões.
GOL! Golaço
de Dos Santos! Eu ergo as mãos aos
céus, direciono os olhos para o lateral do campo e vejo Max pulando como um louco!
Que sensação incrível esta – uma incomensurável felicidade!
******
Os
gigantes de HD 40307g começam a exercer intensa pressão sobre nossa defesa. Na
qualidade de capitão, grito com a
equipe, dizendo que não podemos permanecer acuados. A admoestação parece dar
resultado, pois Francesco dispara com
a bola desde o meio de campo, dribla
três adversários e desfere uma bomba,
que explode na trave esquerda do guarda-meta Agnew.
Aproxima-se
o final da primeira etapa e eu começo a respirar um pouco mais aliviado. Até
que... O que é isso? Um vacilo no
lado direito de nossa defesa! Urik
pode fazer um cruzamento perigoso. Ele o faz! A bola desvia em alguém de nosso
time. Ricocheteada, ela quica no interior da pequena área.
Darrel, por favor! Darrel!
Ele se atira com
valentia aos pés do adversário, desviando a esfera de couro para a altura da meia-lua da grande área. Nosso cabeça-de-área tenta afastar o perigo,
mas falha! A bola sobra para... Dan –
justo para Dan! O craque alienígena faz um arremate
certeiro, vencendo Darrel e
celebrando com uma desajeitada cambalhota o gol de empate.
Uma ducha de água fria, para usar uma das expressões
preferidas de Max.
Uma ducha gelada, para ser mais exato.
******
Quando o primeiro
tempo terminou, um vendaval de emoções
invadiu meu cérebro. Durante o intervalo, vivi a expectativa de que o treinador colocasse Max em campo, mesmo ele não estando em
suas melhores condições físicas. Afinal, meu irmão era um dos craques do time.
Entretanto, voltamos para o segundo tempo com a mesma formação.
O jogo seguiu
equilibrado e repleto de oportunidades de gol
para ambas as esquadras. Começava a
ficar evidente que nosso maior adversário naquele dia seria o arqueiro Agnew. Parafraseando meu irmão mais uma
vez, digo que Agnew estava defendendo até
pensamento! Aliás, “Agnew, o Terrível”,
me parece uma boa designação.
Olho para o banco de
reservas e vejo a tensão no rosto de Max.
Ele parece não estar nada otimista com o resultado deste jogo. Assimilo seu
pessimismo. Poucos minutos depois, todavia, ouço uma exaltação vinda das
arquibancadas: gritavam por Max.
O treinador o chamara para entrar em
campo!
******
É a primeira vez que Max toca na bola: um lindo passe em
profundidade, que coloca o lateral Rocha
naquilo que chamam de cara do gol
adversário. Eu me preparo para gritar “gol”
e dar um abraço apertado em meu irmão, mas nosso ala esquerdo titubeia com a bola nos pés. O gigante Agnew surge à sua frente e... Derruba-o!
É pênalti!
À beira do gramado, o
treinador ordena que eu faça a cobrança, mas vejo nos olhos de meu irmão que
ele quer esta atribuição. Aponto-o para o mestre,
como a lhe pedir autorização para abdicar da tarefa. A princípio, noto o professor apreensivo, mas no instante
seguinte ele faz um gesto afirmativo com a cabeça: Max está autorizado a cobrar o pênalti
e – oxalá – convertê-lo no gol da
vitória!
Ele respira fundo e
toma a bola em seus braços. Coloca-a na marca
de cal, fecha os olhos e respira profundamente. Aproximo-me e lhe desejo
boa sorte. Meu irmão esboça um sorriso; parece sentir o peso da
responsabilidade. Pensei em lhe pedir a bola, mas aquele era seu jogo, sua simulação. Deixei-o então a sós, diante do Terrível.
Max parece disposto a disparar
um torpedo, tamanha a distância que toma
da bola. Ele corre em direção a ela de forma decidida, mas hesita no meio
do caminho. Quase para. Os dois passos seguintes são lentos e vacilantes...
NÃO! Um chute
rasteiro muito fraco, quase no meio da cidadela
inimiga. Agnew nem precisa
utilizar seus membros superiores; é capaz de defender a cobrança apenas
esticando sua perna esquerda.
Meu irmão abaixa a
cabeça, acusando o golpe.
******
Vivenciei uma
tormenta durante os minutos seguintes, sobretudo por notar que Max tentava decidir o jogo sozinho,
desperdiçando boas oportunidades de realizar jogadas em equipe. Ele parecia
alucinado; dava a impressão de que vencer aquela partida era uma questão de vida ou morte.
Porém, não vencemos,
ao menos durante o tempo regulamentar. Os dois times haviam se desgastado muito
no primeiro tempo e não foram capazes de chegar ao gol de desempate durante a segunda etapa, apesar de várias
oportunidades desperdiçadas.
Fim do tempo
regulamentar. Agora teríamos que enfrentar trinta minutos de prorrogação.
Conversei com Max durante o curto intervalo. Ele confessou
ter ajustado o grau de dificuldade do simulador
de experiências para a Grande Final.
Colocara-o no nível máximo.
– Quanto mais difícil
a batalha, mais saborosa a vitória – disse-me ele.
Às vezes meu irmão
parece insano. Mas, fazer o quê? Eu o amo mesmo assim!
******
Pressionamos a equipe
alienígena durante todo o primeiro tempo da prorrogação.
Foi nosso melhor momento durante toda aquela partida. Muitas situações de gol foram perdidas.
Durante o segundo
período, o jogo perdeu velocidade. Os jogadores de ambas as equipes, além de
exaustos, mostravam certo receio de se aventurarem ao campo inimigo e sofrerem um rápido e fulminante contra-ataque.
******
A cobrança dos
decisivos pênaltis estava a poucos
minutos de nós. Precisávamos de um gol
com urgência. Confiávamos em Darrel,
mas sabíamos que a natureza havia sido mais benevolente com Agnew para o exercício daquele ofício.
Não bastasse isso, eu começava a perceber o aumento do peso de minhas pernas –
era o cansaço que me dominava.
Foi então que vi Max conduzir a bola em direção à linha de fundo, no lado direito de nosso
ataque, próximo à grande área dos Battolls.
Pensei: é agora ou nunca! Eu ainda
estava na intermediária, ofegante. Meu preparo físico sofrível estava a me
dizer que eu não aguentaria mais um pique.
Mas fui teimoso: impulsionei as pernas com a força de minha mente – é ela quem
me comanda!
Aproximo-me da grande
área em correria desenfreada, na direção da marca de pênalti. Torço para que Max faça
o cruzamento; confio em sua habilidade e inteligência.
Antes que Max lance a bola em minha direção,
posiciono-me à frente do gol,
buscando aproximar-me da segunda trave.
Meu irmão dá um corte no zagueiro,
deixando-o estirado no chão. A bola quase ultrapassa a linha de fundo, todavia Max
consegue alcançá-la e efetua um cruzamento forte e rente ao chão, fazendo com
que a bola passe por baixo do corpanzil de Dan.
Em seguida, grita com rouquidão:
– Guilherme, faça o gol!
“Guilherme”, ele
disse. Max pronunciou meu nome mais uma vez!
Eu me atiro em
direção à bola, como um adolescente no vigor dos quinze anos, pois sinto que é
nossa última chance na partida. Por um momento, vivencio a impressão de ter sofrido uma espécie de colapso físico e mental. Em seguida, ouço um grito vindo
do banco de reservas. Parece-me ser a
voz do treinador, que é seguida por
um barulho ensurdecedor, oriundo de todas as partes do Estádio.
Dominado pela emoção,
mal senti o choque da bola contra minhas canelas. Quando abro os olhos, vejo-me
deitado, tendo a meu lado um tufo de grama que minhas chuteiras arrancaram. Um
mero instante depois, todo o peso de Max
está sobre mim, socando meu corpo contra o chão:
– Gol, mano! Goool!
Ele
chora; chora e ri com a alegria da criança que deixara de ser (não por
completo) há cerca de oito anos. Como irmão mais velho e protetor, delicio-me
com uma satisfação incomensurável ao vê-lo tão eufórico.
–
O título será nosso! – é o que respondo no exato instante em que percebo que
algumas lágrimas rolam também em meu rosto.
Os
demais jogadores chegam quase que instantaneamente. A alegria é enorme.
Contagia. Nas arquibancadas, os sudamericanos
fazem uma festa muito bonita. É difícil acreditar que se trata de uma mera simulação. Tudo parece ser muito real,
uma realidade magnífica, bastante diferente do que tem nos proporcionado o
(agora vejo) entediante século vinte e seis.
******
Minha mente retorna ao instante atual.
Sim, eu estava
emocionado. E fiquei ainda mais tomado pela emoção quando o árbitro apitou o
final do jogo. Que comemoração magnífica nós fizemos!
Mas... Como
compreender aquela minha excitação? Tal comportamento não era de meu feitio. Max disse-me hoje, com sua sabedoria
juvenil, que as emoções dispensam explicações. E que podem ser muito intensas e
agradáveis.
– É o coração quem me
comanda! – exclamou ele, com a mão no peito.
Se deixasse a cargo
de minha mente a interpretação do que vivenciamos nas simulações, ela definiria aquilo como algum tipo de patologia psíquica, motivada
provavelmente pelo delírio coletivo
do jogo. Todavia, sinto (sim, sinto!)
que aquelas experiências foram deveras enriquecedoras para meu intelecto. Participei
de um certame imaginário que agregou significado à minha existência.
Está bem, eu
confesso: noto que já não é o cérebro quem me dirige. Ao menos, não ele
sozinho. Meu irmão mostrou-me que sou mais que um ser pensante. Sou
inteligência, mas também sou sentimento. Compreendo agora
que é racional que eu tenha o desejo de extravasar minhas emoções. Quero
continuar a fazer isto.
Experimento desde
então uma sensação muito agradável. É algo intenso, que eu desconhecia por
completo. Posso ver no reprodutor de
imagens e sensações uma mudança até mesmo em minha aparência: estou a
exibir, neste momento, um sorriso exultante. Há certo brilho em meus olhos.
Terei perdido o juízo,
a sensatez, o senso do ridículo? Não, não creio. Segundo Max, esta é a tal felicidade.
Então é isto: eu
estou feliz. E, pensando bem, não é
para menos. Afinal, fiz o gol do título da Sudamérica!
Eu ergui a Taça de
Campeões da Copa Galáctica de 2502!
\o/
[1] Max adora me chamar desta forma: “mano”.
Mais uma daquelas palavras antigas conhecidas como “gírias”. Preferia que ele
me chamasse de irmão, mas posso aceitar com serenidade algumas de suas
excentricidades.
Curiosidade 1: os lances da final da Copa Galáctica foram inspirados nos melhores momentos do eletrizante duelo Brasil x França pelas quartas de final da Copa do Mundo de 1986. O autor, na qualidade de apaixonado torcedor, alterou o desfecho de certas jogadas, em especial para converter em gol um cruzamento que passou a milímetros do pé direito do cerebral e saudoso futebolista SÓCRATES.
Curiosidade 2: os nomes de alguns personagens são homenagens a músicos que integram (ou integraram) minha banda favorita: NAZARETH.
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