Enigma


Banhado pelos últimos raios de sol do domingo, o trem seguia seu tradicional trajeto. Lentamente, cortava as plantações que margeiam a linha férrea a noroeste do gigantesco Condado. Trigo e milho se alternavam na paisagem. Em alguns trechos, eram salpicados por escassas pastagens, porém logo em seguida voltavam a dominar o ambiente em ambos os lados dos trilhos. Belas nuances de verde, mas que aos poucos iam se tornando monótonas aos olhos da médica recém-formada. Um percurso interminável, tedioso. Ela preferia movimento, agitação.
Aléssia rumava para seu novo lar, uma antiga casa num lugar remoto, há pouco mais de um quilômetro da penúltima estação. Ainda havia muitas estações a percorrer e ela estava tensa e incerta sobre a escolha que fizera. Era uma grande mudança nos rumos de sua vida. E o lugar... Bem, não se parecia nada com ela. Todavia, fora a melhor proposta de trabalho que havia recebido.
O trajeto era longo; o trem, lento e rangedor. Parecia um velho rabugento fazendo, a contragosto, uma longa caminhada prescrita por seu geriatra. Mas, seu ranger era ritmado, constante, e aos poucos começou a entorpecer a solitária jovem. Ela estava entretida com seus planos para o futuro e queria refletir um pouco mais sobre o trabalho que aceitara no hospital local, mas o sono começava a tomar conta de seu corpo. Esforçou-se para continuar desperta. Teria feito uma boa escolha? - perguntou-se. Talvez sim, talvez não. De qualquer forma, pretendia retornar em poucos meses para sua cidade natal, mais populosa e feliz do que aquela cidadezinha rural, ou quem sabe até realizar o sonho de encontrar um bom emprego na reluzente e cosmopolita Capital.
Poucos minutos depois, seus pensamentos foram finalmente vencidos pelo cansaço. A mente foi derrotada pelo corpo. Pesadas, suas pálpebras caíram sobre os olhos verdes amendoados e sonhadores. Antes que a noite chegasse, Aléssia já havia adormecido.
No vagão, não havia mais do que nove ou dez pessoas. Um casal com duas crianças, uma delas de colo. Os demais, todos idosos. Eles traziam em comum uma aparência apática e desolada que Aléssia percebera, mas julgara compreensível para habitantes de uma região tão remota e esquecida do País. Concentrada em seus pensamentos, entretanto, não notara que nenhum deles pronunciara uma palavra sequer durante a viagem. Pareciam mudos, embora o trajeto já durasse horas.
Algum tempo após a chegada do breu da noite, um grito gutural rasgou o silêncio. Vinha do trem, mas não daquele vagão.
A médica acordou num sobressalto. Sentiu o coração bater quase na garganta. Moveu os olhos ao redor e observou o ambiente. Dentro do vagão, todos permaneciam silentes. Os idosos estavam em sua habitual serenidade apática. Algo mudara, contudo, no casal e em seu filho mais velho. Eles continuavam calados, porém seus olhos estavam esbugalhados, numa espécie de alerta mudo. Não transmitiam medo (na verdade, não transmitiam sentimento algum), mas aparentavam estar sob o efeito de hipnose. O nenê, no colo da esposa, parecia dormir. Pelo menos ele parecia bem.
Do lado de fora, o negro da noite engolira o verde das pastagens e plantações. Não havia iluminação alguma naquele trecho. Era um pouco aterrorizante. Aléssia preferia rever os entediantes milharais. Vencendo o receio, levantou-se de seu lugar e percorreu lentamente o vagão, ora olhando para os passageiros, pensando em lhes oferecer ajuda, ora buscando divisar algum movimento às margens do caminho que seguiam. Ao chegar próxima ao final do vagão, notou que um casal de idosos a observava. Pareciam ser os únicos a notar sua presença.
– Tudo bem com vocês? Ouviram um grito estranho?
Eles se entreolharam e abaixaram as cabeças. Nada disseram.
– Estão com medo?
O silêncio permaneceu, mas a pequena senhora ergueu os olhos em sua direção. Sem dúvida, queria dizer algo, entretanto sequer moveu os lábios.
– Eu vou até o vagão ao lado. Acho que o barulho veio de lá. Fiquem aqui, okay? Vou investigar e já volto.
Desta vez foi o velho quem ergueu os olhos, porém não expressou emoção alguma. Mas, havia tensão no ambiente, ela agora podia sentir. E isso ficava mais claro a cada instante. Um pavor profundo emanava de cada um deles, embora não demonstrassem. Profundo, mas estranhamente resignado, como se o que temessem fosse inevitável.
Aléssia sentiu que o medo começava a dominá-la, mas era curiosa e determinada. Investigaria. Investigaria e haveria de saber o que estava acontecendo. Seguiu para o vagão da frente e logo percebeu que estava completamente vazio. O único sinal de vida vinha do piscar de uma lâmpada em agonia.
            Onde estarão os outros passageiros? – perguntou-se e saiu em disparada pelo trem, escancarando aos tropeções as portas seguintes apenas para encontrar mais vagões vazios. À direita do veículo, vislumbrou ao longe uma espectral luz alaranjada, sem forma definida, bruxuleando por entre o breu das matas. Nesse momento, o vento começou a assoviar uma melodia repugnante. Aléssia agora tremia dos pés a cabeça e girava nos calcanhares de um lado para outro, como se pressentisse que um oponente inumano pudesse aparecer a qualquer instante. Sua mente estava entrando em pânico e ela começou a fantasiar acontecimentos macabros. A sensação era de perigo iminente.
            Tomou coragem e seguiu para abrir a última porta. Haveria alguém guiando aquele trem? E que tipo de criatura seria? Girou a maçaneta e... Sim, havia alguém!
            Um homem de meia idade, gordo e de postura desleixada era o maquinista. Quando olhou em sua direção, ela se viu diante de um semblante lívido, um rosto de cera, de artificial tranquilidade:
            – Fique tranquila, garota. Em breve você chegará. Não haverá mais preocupações. Sua vida será um mar de rosas.
            Irritada, ela retorquiu:
            – Onde estão os outros passageiros? Por que as pessoas no meu vagão estão tão estranhas? O que está acontecendo aqui?
            Ele riu um sorriso imperfeito. As arcadas dentárias se tocavam, gerando um estranho sibilar. O homem parecia um ser inacabado.
            – São muitas perguntas bobas. Fique tranquila como os outros e ficará tão bem quanto eles.
            – Você acha que eles estão bem? Os coitados estão em estado catatônico. Parecem zumbis!
            O maquinista fechou o semblante por um instante, mas em seguida abriu um sorriso teatral e começou a cantar uma melodia dissonante. As palavras eram pronunciadas num idioma desconhecido e exerciam um efeito hipnótico. Confusa e amedrontada, Aléssia teve uma repentina tontura, mas esforçou-se para se manter em pé e retornar ao seu vagão. Quando chegou lá, sentiu-se um pouco melhor.
            Nada havia mudado por ali. Os idosos permaneciam demasiado apáticos e o casal com filhos continuava com os olhos muito salientes, mas inexpressivos. Aléssia imaginou que eles também deviam ser novos naquelas paragens, ou apenas visitantes. Afinal, a cidade era conhecida por ser um refúgio de aposentados.
            Aproximou-se deles. Como médica, pretendia ajudar a todos de alguma forma. Tinha esperança de conseguir se comunicar ao menos com o casal. Passou a mão na frente da face de cada um deles, tentando gerar alguma reação. Nenhuma resposta. Olhou para o lado de fora do trem, à esquerda e à direita. Este trecho era iluminado, embora debilmente, e sua estação se aproximava. Nada mais lhe restava fazer a não ser retornar para seu lugar e aguardar por sua vez de descer. Aliás, tinha que confessar que ansiava por sair daquele trem.
            Desceu sozinha. Os demais, ao que parecia, desceriam na última estação. Ou jamais desceriam.
            A noite estava fria, o que a forçou a andar ainda mais depressa. Temia encontrar seres esquisitos à espreita, criaturas que talvez tentassem fazê-la ingressar naquele estranho torpor, ou então lhe causar algum outro mal. Felizmente, nada aconteceu. Chegou a seu novo lar com a mente e o corpo exaustos, todavia ambos pareciam funcionar perfeitamente. Havia outras casas na rua, algumas delas com as luzes ainda acesas, o que por certo era motivo de alívio.
Agora devia dormir, pois iniciaria o trabalho no hospital no dia seguinte. Clinicava por vocação, amava a profissão, e haveria de começar a todo vapor. Queria estar bem em seu primeiro dia.
            Trabalhou normalmente durante as primeiras horas e esperava contar para alguém à tarde o que vivenciara no trem, mas logo após o almoço foi acometida por uma estranha apatia. Procurou um quarto vazio e deitou-se.
            – Dra. Aléssia? Dra. Aléssia?
Ela tentou responder, mas não conseguiu.
– Dra. Aléssia, você está muito pálida. Diga alguma coisa.
A jovem médica esforçou-se para falar, mas sua língua parecia anestesiada. Desesperou-se, tentou se debater, porém não conseguiu mover um centímetro de seu corpo. Tentou chorar, mas nenhuma lágrima surgiu. Suas pálpebras, rígidas, não esboçavam qualquer movimento. A sensação era de estar lutando contra uma energia invisível, um mal além de sua compreensão e indiferente aos esforços que fazia para retomar o controle de seu corpo. Queria gritar, sacudir-se, ter qualquer reação que pudesse indicar que algo estava muito errado, entretanto não podia.
– Deve ser apenas cansaço, enfermeira. A garota abandonou tudo para vir clinicar neste fim de mundo. Isso deve estar sendo muito estressante para uma jovem inexperiente como ela. É compreensível. Amanhã, se ela continuar assim, faremos exames complementares.
Amanhã?... A enfermeira vacilou por um momento, mas pareceu convencer-se em seguida:
– É verdade, Doutor. Ela não tem febre. Batimentos cardíacos e pressão arterial estão normais. O hemograma e o leucograma também estão okay.
O médico chefe, Dr. Daniel, anuiu com a cabeça.
Médico e enfermeira deixaram o quarto, enquanto a jovem médica permanecia na maca, com uma expressão vaga e distante no rosto. Antes de fechar a porta, a enfermeira olhou novamente para Aléssia e, com uma pitada de preocupação, franziu o cenho.
Aqueles olhos esbugalhados... Não, não parecia certo. Aquilo era muito estranho.
A mulher de branco girou o pescoço e procurou pelo médico. Iria pedir para que voltasse, mas, tomada por pelo espanto, recuou um passo e encostou-se ao batente. Seu rosto empalideceu.
Nesse meio tempo, usando todas as energias que conseguiu encontrar em si mesma, Aléssia obtinha uma parcial vitória sobre a inércia que tentava consumi-la. Entre o entorpecimento e a lucidez, conseguiu sentar-se na maca. Atônita, observou o cenário à sua frente.
Dr. Daniel estava petrificado no corredor, a meio caminho de sua sala. Um quadro sinistro.

Uma estátua viva.

(Ricardo Guilherme dos Santos)

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