Explosão Cambriana (em Titã)

(imagem: Titã; foto: Voyager)

(Adaptação de prequela escrita para o universo ficcional A Odisseia da Fênix, criado por Miguel Carqueija)


“Isótopos, argônio-36: elevação – substancialidade. Pressão atmosférica: redução. Moléculas alaranjadas: migração, superfície. Etano, metano: transformação. Formação: água, oxigênio. Vida orgânica: surgimento. Seres marinhos, multicelularidade: detecção. Formas de vida: expansão; velocidade – parâmetros incompreensíveis.” (androide Billy, quando do ingresso de Vicki Star na atmosfera de Titã)


Diário de bordo do astrobiólogo Lúcio Valdez, 1º registro em Titã.

Vicki Star, a espaçonave senciente que nos conduz, pousou hoje em Titã. A fuga das garras do Império foi turbulenta, porém a perseguição parecia ter cessado após a travessia das camadas superiores da atmosfera terrestre. A partir de então, fizemos uma viagem tranquila até a Estação Jupteriana Stephen Hawking.

Após reabastecermos ali as baterias de hidrogênio, duas naves imperiais surgiram em nosso encalço. Para nos livrar delas, utilizamos uma complexa tecnologia de simulação, fingindo partir para Alfa Centauro. O escudo eletromagnético Égide foi acionado como parte do plano de despiste. Ele tem como funcionalidade adicional a capacidade de bloquear os sinais espaciais de nossa condutora, e foi muito eficiente ao executar esta tarefa. O engodo surtiu efeito e nós aceleramos na direção de Saturno, beneficiando-nos do impulso fornecido pelo campo gravitacional de Júpiter.

A alunissagem em Titã perfectibilizou-se nas adjacências de um dos oceanos que emergiram em razão da onda de calor que atinge o lugar. A elevação da temperatura - aliada ao aumento da gravidade e a certas alterações atmosféricas- constitui um mistério apto a aguçar a curiosidade de qualquer cientista.

É uma honra (de certa forma, também uma grande ironia) que sejamos nós os desbravadores de Titã, cuja exploração há tantas décadas foi abandonada. Justamente nós, os democratas que ousaram desafiar a truculência do Poder Imperial. Os fugitivos fora-da-lei, como o 2º Imperador do Cone Sul prefere nos denominar.

Sim, fugimos da opressão que nos era imposta, chegando a esse paraíso assombroso. E coube a mim, o cientista mais experiente a bordo, traduzir em palavras nossas primeiras impressões desta lua em enigmática transformação.

Titã parece ter sido alvo de algum tipo de terraformação. Entretanto, não há tecnologia na Terra capaz de realizar tal proeza com tamanha rapidez. Eis aí o motivo de nosso assombro, a razão para a ansiedade que nos consome: por óbvio, estamos diante do trabalho de alguma inteligência alienígena, de seres que necessitam de condições atmosféricas similares às nossas para sobreviver. Parentes genéticos.

A fauna juvenil que identificamos aqui nos intriga. Acreditamos que a lua laranja vivencia uma época equivalente aos anos primevos do Período Cambriano, que teve lugar na Terra há cerca de quinhentos e trinta milhões de anos. Cuida-se, especificamente, de uma fase evolutiva semelhante à que ficou conhecida em nosso planeta como “Explosão Cambriana” – um enigma que os estudiosos tentam solucionar desde épocas remotas.

Semelhante sim, porém não precedida das fases anteriores. A princípio, um absurdo. Todavia, o absurdo é vislumbrado porque formamos nossas convicções tendo por fundamento a ciência incipiente da Terra, que muito tem a evoluir.

Estou certo de que as vivências que nos aguardam acrescentarão importantes conhecimentos a nossos intelectos. Tais vivências, inclusive, já tiveram início.

A primeira delas ocorreu instantes após adentrarmos a órbita de Titã. Na ocasião, acredito ter experimentado a sensação de que atravessávamos uma barreira invisível. À ausência de palavras capazes de fornecer significado científico a tal percepção, concluí ser mais sábio quedar-me silente. No entanto, Vicki confidenciou-me depois ter sido surpreendida por similar impressão. A espaçonave especula que uma camada energética está a envolver esta lua. Segundo seus estudos preliminares, estamos falando de um engenhoso mecanismo, capaz de potencializar a ação dos grávitons, bem como de expandir a dimensão temporal. Quem nele adentra, embarcaria rumo ao futuro de Titã. Em circunstâncias diversas, eu consideraria inverossímil a tese em questão. Porém, diante do que temos presenciado, não posso descartá-la por completo.

O fato é que estamos a nos sentir verdadeiras criaturas das cavernas, seres da Idade da Pedra que embarcaram no que um leigo designaria uma “lua-máquina do tempo” – a viajar rumo ao futuro, tendo Titã como referencial, ou em direção ao passado, se utilizarmos a vida na Terra como paradigma.

A proposição de Vicki trouxe-me à lembrança antigas lições escolares. Ensinaram-me os mestres da universidade que os povos cujo início da produção científica é recente sempre enxergam os engenhos de civilizações avançadas como frutos de mágica. Meu mentor, o Reitor Fonseca, tinha predileção por uma frase do escritor Arthur C. Clarke:

“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”.

Sim, a terceira lei de Clarke, hoje conhecida por todos os catedráticos em astrobiologia. E esta é a leitura que faço acerca de nossas recentes experiências: tenho a sensação de que fomos alvejados por uma vara de condão e transladados para um universo onde o impossível é real.

Voltemos aos fatos. Minutos após a sensação que relatei, todos os tripulantes relataram uma grande surpresa: ao planarmos pela estratosfera, notamos uma espaçonave rumar em nossa direção e parar diante de Vicki.

“Composição, metais: origem extraterrena” – informou-nos na ocasião o pitoresco androide Billy.

A princípio, o capitão Dos Santos julgara prudente que Vicki se afastasse de tal engenho, mas em seguida ele determinou o retorno de nossa condutora ao local do contato. A nave desconhecida permanecia no mesmo lugar e nos observou durante cerca de cinco ou seis minutos. Em seguida, aos poucos adquiriu invisibilidade, até não mais ser identificada por nossos cérebros. Segundos depois, compartilhamos da inquietante sensação de perceber sua energia atravessando Vicki. É plausível que, durante este fenômeno, os alienígenas tenham realizado completa varredura nos acervos de nossa espaçonave, assim como em nossos corpos. A curiosidade, como vocês podem notar, não é monopólio dos terrestres.

Vicki obteve êxito em traduzir uma mensagem que nos fora enviada durante aqueles minutos de contemplação silenciosa. A missiva espacial, produzida numa linguagem semelhante à utilizada pelos sumérios na época das grandes construções de pedra, revelou-se uma pequena decepção: tratava-se apenas de uma saudação padrão, desacompanhada de explicitações que nos permitissem melhor compreender aquelas criaturas – prováveis artífices da estupenda eclosão de vida nesta lua saturniana. Por sorte, ao transpassar Vicki, o engenho ectoplasmado alimentou o computador central de nossa nave com um manancial de dados protegidos por criptografia genética e algumas chaves matemáticas. Não temos cientistas destas áreas a bordo, porém Victoria Murrison, a arqueóloga, está confiante em desvendar o significado destas informações. Ela contará com a ajuda da base de dados de nossa condutora senciente. Embora não possamos esperar celeridade nesta tarefa, é impossível não se deixar contagiar pela ansiedade.

Cumpre relatar que a sonda Maya detectara, meses atrás, indícios de rudimentar forma de comunicação em Titã, de procedência oceânica. Este possível colóquio alienígena tem sido corroborado pelos aparelhos da bióloga marinha Loretta de Sousa e pelos potentes sensores auditivos de Vicki. Sugeri à Doutora Madeleine Furtado, líder de nossa expedição, que as pesquisas locais tenham início nas investigações deste fenômeno. Acatando meu desígnio, a Dra. há pouco determinou a Loretta que preparasse o robô mergulhador para realizar este trabalho.

Não remanescem dúvidas: Titã é hoje um mundo incompreensível, porém igualmente um fértil território para pesquisas científicas. Nossa estadia em seu seio consubstancia uma importante oportunidade para desvendarmos o mistério da veloz evolução da vida neste satélite natural. Esta investigação nos fornecerá dados para melhor conhecer o passado da Terra, bem como para projetarmos seu futuro.

Sinto um tênue choque em meu pulso destro. É um chamado do capitão Gustavo. Ele requisita a presença de todos os tripulantes na ponte de comando. Creio saber o motivo: Doutora Furtado tomou a providência de alimentar os sistemas informatizados de Vicki Star com dados multimídia acerca da Evolução na Terra desde a época Arqueana até o Período Permiano (uma antítese à explosão de vida cambriana, palco da extinção em massa de vários organismos, em especial os de origem marinha). Intuo ter chegado o momento da apresentação holográfica, que será de grande utilidade em nossos estudos locais. Em breve, deixaremos a nave e pisaremos no solo de Titã pela primeira vez. Como não sentir o coração acelerado?

Antes de atender ao chamado, deixo uma anotação derradeira a este registro: talvez tenhamos que estabelecer moradia em Titã, pois o Império Terrestre não tolera a deserção de revolucionários democratas. Se regressarmos, por certo teremos nossas vidas ceifadas. É possível, portanto, que passemos a ter um novo lar no espaço (e, sob certa ótica, também no tempo). Esta constatação remete meu cérebro a uma reflexão: a maioria dos cientistas refuta com veemência a possibilidade de viagens temporais. Eles citam, para justificar seu ceticismo, possíveis inconsistências, conhecidas como “paradoxos”. Entretanto, as primeiras evidências em Titã indicam que existe algum tipo de aparato tecnológico, ainda incompreensível para os homo sapiens da Terra, capaz talvez até de contornar as barreiras por eles suscitadas.

A verdade é que há inúmeros segredos a serem desvendados por este universo afora. E muito a ser aprendido. Ouso dizer que sempre haverá, por mais que evoluamos.


A saga humana jamais terá um ponto final.

(Ricardo Guilherme dos Santos)

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