Lembranças

(Texto inspirado na música In My Life, do álbum Rubber Soul - The Beatles)

Há anos não ouvia essa música, mas eis que minha estação de rádio favorita começa a tocá-la bem no momento em que tiro meu carro da garagem e vislumbro o congestionamento à minha frente. O trânsito faz parte da rotina desta cidade gigantesca, adorável e neurótica ao mesmo tempo. Procuro me habituar a ele como a tudo mais na eclética São Paulo. Quanto à música, não sei dizer se a surpresa em ouvi-la novamente é agradável ou não, pois com ela costumam vir à tona sentimentos intensos e contraditórios.
            Ouço os primeiros acordes e regresso no tempo. “There are places I remember”, cantam os eternos garotos de Liverpool, e eu quase digo a eles que também me recordo de muitos lugares pelos quais passei em cinco décadas de vida. Quase todos trazem agradáveis lembranças: da infância, da adolescência, da mocidade. Épocas de muitos sonhos, de vários planos, a maioria tão malucos quanto bem-intencionados, entretanto o tempo e as vicissitudes da vida cuidaram de deixá-los para trás. Estão hoje guardados num compartimento da minha memória e talvez – bem, isso pode soar como uma viagem bem maior do que o trajeto que inicio agora rumo ao trabalho –, talvez tenham se realizado em alguma realidade paralela cuja existência os físicos quânticos podem vir a comprovar algum dia.
            Esterço o volante à direita e logo tenho de acionar o freio diante da imensa fila de veículos. Buzinas impacientes soam em vão. Eu diria que o trânsito hoje está ainda mais congestionado do que de costume. Em meio às recordações que começam a surgir, um pensamento atual: hoje é véspera de feriado prolongado. Por certo, há mais carros nas ruas, pessoas que pretendem viajar após o final do expediente, o que significa maiores congestionamentos. Noutros dias, significaria também um estresse maior, mas hoje algo diferente acontece: minha mente aceita o convite dos Beatles e decide buscar outra sintonia.
            E lá vem a tão temida jornada ao passado...
Tenho evitado colocar o álbum Rubber Soul para tocar, mas fui traído pelo rádio do meu carro. In My Life é uma espécie de trilha sonora da minha vida há décadas. A melodia me encanta tanto quanto a da mística Across the Universe (do magnífico Let It Be), mas considero a letra de In My Life ainda mais pungente. Amo esta música, mas tenho fugido dela. Como disse há pouco: sentimentos intensos e contraditórios...
Quando você chega à faixa etária dos cinquenta anos, já teve tempo de ver muitas coisas, de conhecer vários lugares, de fazer boas amizades e vivenciar alguns amores. E, mesmo que você não se dê conta imediatamente, todas estas experiências serão de grande importância em sua vida. Até mesmo as memórias amargas te enriquecerão (talvez principalmente elas).
Os lugares podem se modificar com o tempo: um parque, por exemplo, pode se transformar num arranha-céus. Há alguns meses, passei pelo bairro onde vivi parte da minha infância e procurei pela praça onde brincava, da qual ainda guardo boas recordações. De supetão, recordei a alegria que sentia ao rolar pela grama. Lembrei também de minhas folias no escorregador e das desajeitadas tentativas de escalar a escada horizontal.
A praça não está mais lá. Três sobrados cinzentos a substituíram, mas vi uma criança brincando no pequeno quintal de um deles. Eu sorri um sorriso meio apagado na ocasião, mas depois percebi que a alegria naquele momento foi maior que a tristeza. Consegui compreender que minha infância de alguma forma continua naquela criança e em tantas outras que estão por aí povoando nosso planeta. A roda da vida permanece a girar e eu creio que devo me sentir feliz por ainda estar girando com ela.
Como na canção, também tenho amigos que hoje estão distantes. Alguns infelizmente já não estão vivos. Talvez eles continuem a existir, de alguma maneira (mais bem-aventurada, espero), em algum outro lugar ou noutra dimensão, mas não tenho como ter certeza de nada disso. E esta incerteza me angustia.
Choro poucas vezes. Quanto o faço, o resultado costuma ser apenas uma ou duas lágrimas, rapidamente enxugadas. De uma forma ou de outra, acabo mudando o foco dos pensamentos. Porém, em determinado momento da música, percebo que desta vez será diferente.
É que eu me recordei dela – exatamente a lembrança da qual eu fugia há tanto tempo. Onde ela estará agora? Ao lado de quem? E, o mais importante:
Ela é feliz?
Não me importo de que não tenha ficado comigo se, para ela, a felicidade estaria em outra pessoa, ou em um estilo de vida ao qual eu não seria capaz de me adaptar. Apenas é difícil pensar no quanto poderíamos ter superado por amor. Se tivéssemos tentado. As diferenças, as aparentes discordâncias, não são necessariamente incompatibilidades. Podem ser complementos. Acho que encontraríamos a felicidade através de nossas dissonâncias, no dia-a-dia, ensinando um ao outro o que já havíamos aprendido sozinhos. Poderíamos envelhecer juntos (vejo isso às vezes em sonhos) e nos separar apenas quando um de nós tivesse que deixar este mundo.
Entretanto, isso é que o que penso hoje. No início da juventude, ainda não vivemos o suficiente para ter este vislumbre de sabedoria que só a maturidade nos traz. E eu sei que minha timidez também atrapalhou muito. A vida é engraçada, porém às vezes de uma graça um tanto sinistra e perturbadora, já que o conhecimento parece surgir apenas após as oportunidades perdidas.
Há quem não acredite em amor à primeira vista. Aliás, acho que a maioria das pessoas. Eu acredito, acredito porque a amo desde a primeira vez que a vi na sala de aula do velho colégio e talvez também porque creio na possibilidade de existências anteriores a esta. Se for realmente assim, se houver outras vidas, fica fácil pensar que muitos encontros na verdade podem ser reencontros de almas afins.
Mas... é melhor não enveredar por estes caminhos. São caminhos incertos, não comprovados pela ciência. É possível que não passem de meras especulações religioso-filosóficas. E eu tenho procurado prezar pelo que me parece palpável, real, demonstrável.
O que é real, indiscutivelmente real nesta altura da minha vida?
Bem, o amor que ainda sinto por ela é real, tão real e intenso que agora me faz chorar pra valer. A saudade que nunca vai deixar de existir sem dúvida também é real. E, por incrível que pareça, noto neste momento que é igualmente real a certeza de que, mesmo um amor não vivenciado plenamente de alguma forma conseguiu me completar. Este é um sentimento novo, uma grata descoberta, como se a execução de In My Life desta vez trouxesse, implícito em seus acordes, uma espécie de mantra libertador.
Sim: mesmo distante de mim todos esses anos, ela influenciou minha vida, tornou-me uma pessoa melhor. Não me perguntem como. Talvez, tenha deixado algo dela comigo sem que eu tenha percebido. Algo nobre, espiritual. O mais importante é que posso sentir que ela conseguiu. E, claro, espero ter feito o mesmo por ela.
Como diz a belíssima música que neste momento toca suas notas finais, eu jamais perderei o afeto por todas as coisas e pessoas que vieram antes (e depois) dela. Eu penso em todas elas com muito carinho, mas vinha me esforçando para bloquear o pensamento na mulher da minha vida. Por quais razões eu teria feito isso? Será porque dói não tê-la hoje ao meu lado? Ou porque, lá no fundo, eu acho que poderia ter me esforçado mais para que continuássemos juntos?
Não nego que estas sejam boas respostas. Provavelmente são verdadeiras. Porém agora, ainda atolado neste mar de carros, reflito um pouco mais e concluo que não é apenas isso. O principal motivo é que eu ainda não estava pronto para perceber que a Natureza, Deus ou sabe-se-lá-quem-ou-o-quê encontrou um jeito de fazer com que viesse até mim o bem que tinha de vir por intermédio dela.
Sim, é exatamente isso! Chegarei ao trabalho nesta véspera de feriado fortalecido pelas boas lembranças de tudo que vivemos, mas, sobretudo, por esta certeza de que o que deixamos de aprender juntos encontrou um jeito de chegar até nós.
Sua companhia me faz falta? É claro que faz. O simples fato de saber que ela estava ao meu lado era motivo de felicidade. A saudade é imensa. Mas, permanecemos ligados neste mundo. Cada um a seu lado, é verdade, todavia unidos por uma energia que, embora não possamos enxergar, em algumas ocasiões somos capazes de sentir que permeia nossas vidas. Esta energia não é materialmente demonstrável, mas é real, embora nos pareça evidente somente durante estes momentos mágicos. Momentos muitas vezes proporcionados por canções.
– Você me fala com os olhos – ela me dizia.
– Gosto de ler as coisas que você escreve – confidenciou-me certa vez.
Hoje, escrevo para ela. E falo com o coração:
But of all these friends and lovers
There is no one compares with you”

(Ricardo Guilherme dos Santos)

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