Conto: Futuro Maculado
Imagem: Desenho "Os Jetsons" (Hanna-Barbera)
Veículos de interessante aerodinâmica,
semelhantes aos antigos automóveis, deslizavam pela troposfera em meio a
arranha-céus curvilíneos. A arquitetura lembrava o arrojo das linhas de
Niemayer, porém os materiais usados nas construções em nada se assemelhavam aos
de sua época. Vistos de longe, os prédios pareciam constituídos de um material
vítreo e moldável. Havia muitas cores nos arranha-céus, cujo brilho ofuscava os
olhos daqueles que os fitavam do chão. Eram prédios esquisitos, retorcidos, mas
acho que posso dizer que ainda assim eram belos. A Nova Avenida Paulista, como
era chamada pelos habitantes da época, parecia uma autoestrada imaginária, sem
delimitação de contornos ou faixas, por intermédio da qual motoristas
impacientes realizavam manobras nada convencionais. Não havia sinalização nos
cruzamentos. Os veículos, vindos de todas as direções, disputavam espaço com
uma voracidade de dar medo. Para resumir: um trânsito apocalíptico.
Ao nível terrestre, transitavam apenas pedestres
e ciclistas (se é que se pode chamar de bicicleta os estranhos artefatos
reluzentes nos quais aqueles terrícolas do futuro trafegavam). As pessoas
aparentavam certa fragilidade. Pareciam anêmicas. Eu caminhava entre elas, nas
proximidades do cruzamento da Velha Paulista com a Rua Padre João Manuel.
Olhava com assombro para cima, imaginando que a qualquer momento uma colisão
poderia ocorrer, resultando na queda de veículos sobre a multidão que se
abarrotava nas vias inferiores.
A
meu lado, a biocientista Andressa
Martins tentava me explicar que o mundo do século vinte e quatro era repleto de
maravilhas tecnológicas. Eu não discordava quanto a isto, mas me preocupava com
a questão da segurança:
– E essas coisas aí em cima, nunca batem nos
prédios? – questionei.
Andressa sorriu, revelando dentes pequenos e
alvos. A moça tinha cabelos negros e finos, olhos verdes e uma hipnotizante boca carnuda. Aliás, o vermelho carmim de seus lábios contrastava com a palidez do rosto. O nariz e os
ouvidos eram delicados; a voz, doce e meiga. Uma beleza frágil, mas
encantadora. Não quis cometer a indelicadeza de perguntar sua idade, mas
imaginei algo por volta dos trinta ou trinta e dois anos.
– Há uma energia que circunda os prédios –
explicou-me Andressa. – Damos a ela o nome de proteção ondular. Ela atua sobre
os componentes eletrônicos dos levimóveis, impedindo que eles se aproximem
demais das construções. Se isto acontece, uma mensagem eletrônica é enviada
para o computador central dos veículos, ativando os pilotos automáticos, que
realizarão manobras de desvio. Há também uma distância mínima regulamentar que
os motoristas devem respeitar. Caso tentem desrespeitá-la, uma multa é debitada
na conta corrente do infrator no mesmo instante. Este mecanismo tem funcionado
com perfeição; não temos um registro sequer de colisões entre levimóveis e
prédios.
– E os veículos não podem colidir entre si e
caírem em nossas cabeças?
– Os levimóveis são equipados com um sistema
computadorizado que se conecta aos demais veículos e a uma estação central de
controle. Se um motorista realiza manobras perigosas, os computadores dos
levimóveis que estão nas proximidades são avisados e ativam o modo de direção
defensiva. O fluxo do trânsito é célere, mas não caótico como pode lhe parecer.
E não se deixe enganar pela aparente fragilidade destes pequenos veículos. Eles
são dotados de tecnologias capazes de mantê-los no ar mesmo que sofram uma
colisão, além de protegerem o condutor e seu passageiro dos efeitos do impacto.
Um levimóvel só despencaria caso sofresse várias colisões seguidas de forte
intensidade, o que é bastante improvável. Além do mais, acima de nós, a uma
altura segura, há o chamado campo de força, uma barreira invisível que amortece
os impactos.
– Como funciona este tal campo de força? – quis
saber.
– Ele é como uma rede transparente, capaz de
suportar o peso de inúmeros veículos no caso de uma queda. Os levimóveis, além
de jamais chegarem ao solo, não sofrem danos com o amortecimento gerado pelo
campo de força, graças à maleabilidade de sua energia protetora.
Enquanto falava, Andressa demonstrava tamanho
orgulho daquela tecnologia, que preferi não compartilhar minhas preocupações
sobre uma possível falha no sistema. No início do século vinte e um, época de
onde eu vinha, trabalhara como tecnólogo em informática. Não cheguei a ter
conhecimentos avançados na área, porém o suficiente para saber que sistemas
eletrônicos e informatizados sempre possuem vulnerabilidades. As panes poderiam
ser improváveis, mas nunca impossíveis.
Foi então que uma sensação de vertigem fez com
que eu tivesse que abaixar a cabeça: desde a reanimação, há dois dias, meu
sistema nervoso central parecia um pouco perturbado.
Sou o que se pode chamar de um homem de meia
idade. Quarenta e cinco anos, moreno, de média estatura, olhos e cabelos
castanhos escuros. No rosto, a barba grisalha, que eu quase sempre deixo por
fazer, deve passar uma imagem de desleixo. Não ligo para isto; sinto-me o mais
comum dos mortais. Por esta razão, tenho queimado minhas sinapses cerebrais na
tentativa de descobrir a razão de os cientistas da USP terem escolhido o meu
corpo, dentre tantos voluntários que haviam se oferecido como cobaias para o
programa Acorde no Futuro.
Minha cicerone pareceu ler meus pensamentos:
– Nós, do Centro Biotecnológico Paulista,
conseguimos enviar uma mensagem intertemporal para o professor Ramón Perez,
chefe do departamento de criogenia da USP. Pedimos a ele que congelasse um
homem comum e o enviasse ao nosso tempo. E... Deu certo! Precisávamos de um
autêntico representante de sua época, Fernando, por isto ficamos muito felizes
quando conseguimos transportá-lo. Você é um espécime perfeito para nossas
necessidades! E não se preocupe, pois em breve poderá ser devolvido a seu
século, caso assim deseje.
Um espécime? Não gostei da palavra utilizada por
Andressa. Entrei em estado de sobreaviso.
Alerta amarelo, Fernando!
******
– Vamos almoçar no Conjunto Nacional?
Ainda entorpecido por náuseas pós-reanimação e
com certo mau humor, apontei para o prédio em questão e disparei:
– Aquilo não se parece nada com o Conjunto
Nacional da minha época, Andressa. Não é a mesma construção, nem sequer se
parece com ela. Será que ao menos tem comida de verdade em algum lugar ali?
– Muita coisa mudou nos últimos anos, Fernando,
principalmente no quesito alimentar.
– Não há nenhum restaurante com apelo saudosista?
Um lugar onde eu possa ver pessoas felizes e bronzeadas, mastigando com gosto
um bom prato comercial, com bife no ponto e fritas?
Andressa sentiu-se desconfortável diante de meus
questionamentos. Sua pele branca tornara-se quase rubra.
– Ahn...
À tarde, a Dra. Silveira irá explicar sobre os problemas com a alimentação nos
dias atuais. Eu não tenho autorização para falar a respeito.
Ela procurou se livrar o mais rápido possível do
assunto:
– Lembrei-me que na Velha Alameda Santos existe
uma cantina que serve uma sopa de algas deliciosa!
– Sopa? Não deveria servir massas, ou então uma
bela pizza?
– Ah, sim! Acho que eles ainda têm pizzas de siri
e anchovas armazenadas no congelador!
– Pizzas congeladas? Numa cantina?
– Sim, a menos que você prefira alimentos
sintetizados...
– Não há outros sabores? Eu tenho alergia a
frutos do mar.
– Se você é alérgico a alimentos marinhos, terá
que se contentar com a comida sintetizada.
******
Depois do almoço, fomos até o estacionamento onde
Andressa guardava seu veículo. Não consegui entender como aquele local
minúsculo podia ser chamado de estacionamento. E o mais intrigante: onde diabos
ficavam os veículos? Estávamos numa sala deserta, no último andar de um prédio
na Peixoto Gomide. As únicas coisas que existiam ali, além de nós, eram
pequenos compartimentos distribuídos ao longo das paredes. Parecia o vestiário
de uma imensa fábrica, onde cada operário guardava suas roupas de trabalho em
armários individuais.
Observei Andressa caminhar à minha frente.
Vendo-a por trás, maravilhei-me ao notar que a natureza continuava fabricando
mulheres de cintura fina e quadris largos. Em segundos, tive a confirmação de
que o congelamento e a viagem temporal não afetaram meus estímulos sexuais.
– Obrigado, Deus! – murmurei, acreditando que a
moça não me ouviria.
– Devo alertá-lo de que a primeira infestação
tornou a audição dos habitantes de nossa época mais aguçada.
– Infestação? Que infestação?
– Estou falando demais. Faça estas perguntas à
Dra. Silveira – dizendo isso, Andressa abriu o armário e retirou dele uma
esfera com cerca de vinte centímetros de diâmetro. O objeto tinha uma
consistência gelatinosa e cheirava a baunilha. A graciosa morena começou a
brincar com aquilo, jogando a esfera para cima e pegando-a de volta, enquanto
se divertia vendo meu semblante interrogativo. Com aquela bola esquisita nas
mãos, ela arregalou os olhos e zombou:
– Aqui está carro do futuro. Mim ensina “homem
das cavernas” pilotar!
Sorri com gosto. Era bom saber que os seres
humanos, embora anêmicos, ainda tinham senso de humor.
Se é que eram mesmo humanos.
******
A coisa funcionava por intermédio de comandos de
voz. Bastou Andressa pronunciar a palavra acionar para que a esfera levitasse,
desvencilhando-se de sua mão e pairando até cerca de dois metros adiante de
nós. Em questão de segundos, operou-se a transformação: a geringonça começou a
se expandir, delineando novos contornos. Um levimóvel foi moldado. Possuía
formato ovoide e era transparente em sua parte superior, deixando ao piloto um
amplo campo de visão.
Andressa aproximou-se do veículo e ordenou a ele:
dois tripulantes. Pronto: dois assentos foram moldados dentro da massa
gelatinosa, que em seguida planou até quase a altura do chão, abrindo suas duas
únicas portas. Ela prosseguiu:
– Ligar computador e ativar piloto automático.
Seus belos olhos verdes dirigiram-se para mim.
Eram grandes e começavam a me deixar hipnotizado:
– Vamos! – disse ela, acenando com a cabeça. –
Você entra no lado do condutor e eu te digo como pilotar no modo manual.
– Esse treco aguenta nosso peso?
Ela sorriu, esticando os belos lábios carnudos.
Em meu subconsciente, eu já a chamava de deusa do futuro.
– É claro que aguenta, Fernando. Entre!
Em poucos minutos, estávamos de volta ao lugar
onde eu fora despertado da criogênese – o prédio do Centro Biotecnológico
Paulista, conhecido simplesmente por CBP. Tratava-se de um dos prédios mais
altos da região e estávamos em seu penúltimo andar. Olhar pelas janelas e ver
os tais levimóveis em ação aumentava minha sensação de enjoo.
Finalmente, eu me vi diante da Dra. Silveira – a
mulher com as explicações.
– Vou ser bem direta, Fernando. A infestação da
qual a Andressa lhe falou não foi nada perto da segunda infestação. Um fungo
infestou quase toda nossa cadeia alimentar. Apenas os alimentos provenientes
dos mares não foram contaminados. A infestação afeta o cérebro das pessoas
contaminadas e alguns outros órgãos vitais. Houve estranhas consequências em
seus comportamentos. Os maculados, como os chamamos, tornaram-se agressivos e
sedentos por carne humana. Quase toda a população mundial foi atingida. Há anos
vivemos uma época pós-apocalíptica. Conseguimos reunir os poucos que não foram
contaminados neste pequeno nicho entre a Bela Vista e os Jardins. Designamos
esta fortaleza como fronteiras da sanidade. Aqui, nos alimentamos de comidas
sintetizadas pelos computadores, ou então de frutos do mar congelados. Porém,
os frutos do mar tornaram-se uma iguaria rara, pois ninguém tem coragem de se
aventurar além da fortaleza que construímos para ir até as regiões litorâneas
adquirir novos carregamentos.
–Você está me dizendo que estas pessoas se
tornaram zumbis?
– De fato, acho que zumbis é um termo mais
adequado do que maculados. Como eu lhe disse, quase toda a população mundial
está sofrendo deste mal, mas aqui você está a salvo.
– As fronteiras da sanidade são invisíveis, mas
protegidas por uma inteligência artificial muito avançada. – interveio
Andressa.
Era como dormir e depois acordar dentro de um
filme de horror. E o mais assustador: ficou claro que a minha presença ali
tinha um motivo mórbido e talvez perigoso para mim. Afinal, eu era um espécime
perfeito para... O quê? Fui tomado por uma espécie de pânico ao pensar no que
eles poderiam estar planejando fazer comigo. Devo ter ficado quase tão pálido
quanto as pessoas que me rodeavam.
– E por qual razão vocês me trouxeram aqui?
– A estrutura orgânica das pessoas de nossa época
tem sofrido mutações em nível microscópico, motivadas pelo abuso de medicações
antibacterianas. Algumas bactérias habitualmente presentes no intestino humano
foram destruídas por completo ao longo dos séculos. Há algumas semanas,
descobrimos que uma delas é capaz de produzir uma substância que elimina os
fungos nocivos.
– E o que vocês precisam que eu faça para
ajudá-los?
– Para falar o português claro, Fernando,
precisamos que você tenha uma bela diarreia! E então separaremos as bactérias
que procuramos e criaremos um ambiente adequado para que se multipliquem.
Podemos fazer isto em poucas horas.
Melhor assim. Eu já estava imaginando passar por
intervenções clínicas dolorosas, extrações de órgãos, mutilações ou algo
semelhante.
******
Depois de tomar um líquido azulado e produzir,
minutos depois, a “matéria-prima” que tanto desejavam, ouvi alguém gritar que a
proteção que nos deixava a salvo dos zumbis fora penetrada. Um corre-corre
iniciou-se dentro das instalações do Centro Biotecnológico Paulista.
Fui até as janelas do nosso andar e visualizei
alguns levimóveis aproximando-se de maneira errante e a uma velocidade
espantosa. A cabine transparente dos veículos permitia-me enxergar criaturas
com feições demoníacas e repletas de feridas. Os veículos trazidos pelos zumbis
impulsionavam-se contra aqueles manejados por pessoas saudáveis, causando
seguidas colisões e algumas quedas, que felizmente eram amparadas pelo campo de
força que Andressa mencionara.
Diante do caos que se instalara lá fora,
pareceu-nos mais sensato permanecer nas dependências do chamado CBP enquanto a
Dra. Silveira e sua equipe trabalhavam no antídoto. Ficamos com os olhos
esbugalhados na frente das janelas por cerca de duas horas, assistindo ao
espetáculo aterrador.
– Como estas criaturas conseguiram penetrar as
fronteiras da sanidade? O que pode ter acontecido com a inteligência artificial
que as coordena? – perguntou Andressa, que estava ao meu lado, a um senhor
calvo, que parecia ser o mandachuva do lugar.
– Parece que a lesão cerebral sofrida pelos
zumbis não afetou muito a inteligência deles. Encontraram uma maneira de
desativar a matriz da inteligência artificial.
– As criaturas devem estar famintas. Ouvi dizer
que precisam de carne fresca. E a carne fresca somos nós! – exclamou alguém às
nossas costas, porém eu não vi quem era, pois não conseguia desviar os olhos da
carnificina que se desenhava no cenário exterior.
Verifiquei que os zumbis, ao provocarem colisões,
ora pulavam sobre os veículos das vítimas, ora se atiravam contra o campo de
força. Olhei para baixo e vi que aquela rede invisível agora abrigava uma
quantidade expressiva de veículos e de vítimas dos acidentes. Elas eram
atacadas com ferocidade pelos zumbis. Pareciam falecer em razão das mordidas,
mas ressuscitavam instantes depois. Maculadas pela infestação, tornavam-se
também criaturas semivivas, tão famintas quanto seus agressores.
Andressa e eu notamos que a energia que impede o
choque dos levimóveis contra nosso prédio (a tal proteção ondular) tornara-se
instável, produzindo ondas energéticas de um verde quase transparente.
Instantes depois, um veículo conduzido por dois zumbis adolescentes chocou-se
com violência contra a parede, cerca de dois andares abaixo de nós.
– Para as ruas! – o mandachuva gritou. – O campo
de força nos manterá a salvo!
Foi um Deus-nos-acuda.
Um rapaz magricelo e com profundas olheiras nos entregou algumas
pistolas-laser, dizendo-nos que, a partir daquele momento, seria cada um por
si.
Andressa tremia. Peguei sua arma e tomei minha
musa futurista nos braços, conduzindo-a até as escadas, pois havia uma disputa
quase sangrenta por uma vaga nos elevadores. Após dois andares, ela me pediu
para ser colocada no chão. Descemos juntos e de forma atabalhoada os vinte e
sete andares restantes.
Conseguimos alcançar a calçada da Velha Paulista,
num ponto onde antes se situava o Museu de Arte Moderna. Ela estava exausta e
muito ofegante, então a peguei no colo novamente. Olhei na direção da antiga
Rua da Consolação e vi que o campo de força estava cedendo naquela altura,
ocasionando a queda de levimóveis, zumbis e pessoas ainda sãs. Ao nosso redor,
as pessoas corriam de forma desenfreada. O cenário era caótico e eu só não
amaldiçoei o momento em que decidira embarcar no projeto Acorde no Futuro
porque estava desenvolvendo uma afeição muito especial pela garota que estava
em meus braços.
Conduzi
Andressa até um espaço livre de aglomerações. Lembrei-me de que, em minha
época, naquele local situava-se o prédio de um Tribunal. Caminhei entre as
pilastras que sustentavam o arranha-céu que o substituíra e encontrei uma porta
aberta. Acomodei a bela Andressa em um nicho que me pareceu bem protegido.
Entretanto, eu não podia simplesmente ficar ali e deixar que outras pessoas
fossem devoradas. Estava munido de duas pistolas
laser e, com elas, acreditava estar em condições de matar um bocado de zumbis. Quando eu me preparava para
sair, Andressa segurou meu braço direito. Ela tirou de seu avental um aparelho
azulado de formato semicircular, que possuía um pequeno botão branco na região
central:
– Fernando, utilize este potencializador de inércia. Ele pode fornecer
a energia necessária para estabilizar o campo
de força até que a Dra. Silveira conclua a fabricação do antídoto.
– Como faremos para aplicar a vacina
nesta quantidade cada vez maior de zumbis?
– eu quis saber.
– Não será uma vacina, homem das cavernas – brincou ela, com um
tênue sorriso. – A Dra. está produzindo um gás que liberará as bactérias
benéficas na atmosfera. Só espero que encontre alguém com coragem suficiente
para conduzir um levimóvel entre os zumbis e espalhar o conteúdo do antídoto
nesta região.
Meu instinto heroico multiplicou-se naquele instante:
– Eu posso fazer isto!
– Não quero que você se arrisque. Eu
estou...
Não esperei que ela terminasse a
frase. Corri com seu potencializador de
inércia até a esquina da Velha
Paulista com a antiga Consolação
e comecei a disparar para cima, esperando que o aparelho fizesse o trabalho que
Andressa acreditava que faria. Vi-me diante de imagens insólitas, com tropeços,
encontrões e batalhas entre humanos e zumbis. Um cenário surreal, típico de um
filme “B”, mas verdadeiro. Trêmulo e atrapalhado, atirei com as pistolas-laser nos zumbis que encontrei pelo caminho (errando a maioria dos alvos,
para dizer a verdade) e voltei o mais rápido que pude, mantendo o potencializador acionado e direcionado ao
alto até chegar de volta ao prédio do CBP.
Respirei fundo, guardei o aparelho e fiquei com as duas pistolas-laser nas mãos, preparado para disparar de novo a qualquer
momento.
Ao
tentar me aproximar dos elevadores, tive que enfrentar alguns zumbis que se aglutinavam no saguão.
Tinham as faces arroxeadas e os olhos esbugalhados. Gritavam em uníssono, de
forma um tanto patética, a palavra “carne”. Senti-me paralisado por um momento
diante da insanidade daquilo tudo, mas logo percebi que não tinha muito tempo
para estas frescuras. Consegui desviar do primeiro grupo de maculados, porém duas outras criaturas
surgiram antes que eu alcançasse a porta do elevador. Efetuei alguns disparos e
corri para apertar o botão de subida. Embarquei o mais rápido que pude, desvencilhando-me
às pressas dos zumbis que tentavam me
morder. Lá dentro, pude recuperar parte do fôlego. Mas... Pela-mor-de-Deus, o que fora aquilo?
A Dra. Silveira trabalhara
rapidamente. Trombei com ela e seu antídoto ao desembarcar no vigésimo nono
andar. Juntos, corremos até seu levimóvel.
O estacionamento estava apenas um andar acima; entretanto, assim que chegamos
lá fomos surpreendidos por um numeroso grupo de zumbis. Não tivemos tempo para acionar nossas pistolas laser e acabamos nos envolvendo em disputas corporais com aquelas coisas.
– Modo de urgência! – gritou
Silveira em dado momento. Num passe de mágica, a porta de seu armário se abriu
e uma esfera gelatinosa apareceu diante de nós.
– Dois tripulantes! – urrou ela. –
Ligar computador e ativar piloto automático! – vociferou em seguida.
Um zumbi corpulento imobilizou a Doutora por trás, pressionando suas
costelas. Consegui acertá-lo com um cruzado
de direita que o levou ao chão. Outros maculados
se aproximaram e tentaram nos agarrar. Entre sopapos e empurrões desajeitados, conseguimos por fim nos
desvencilhar daqueles infectados. Ufa!
Eu
queria fazer tudo sozinho. Imaginava-me pilotando o levimóvel e ejetando o composto
salvador pelos ares, todavia não podia negar que aquela mulher era mais
gabaritada do que eu para conduzir o veículo. Aliás, admirei-me com a perícia
que ela demonstrou ao desviar dos carros-zumbi
que surgiram em nosso encalço. Sentindo meus batimentos cardíacos em ritmo
frenético, vaporizei o produto na troposfera, utilizando o mecanismo que ela me
forneceu. Aquele gás possuía a interessante propriedade de penetrar na massa
gelatinosa que constituía os levimóveis,
tornando inevitável que os zumbis o
inalassem. Pouco depois, as criaturas começaram a se acalmar. Depois de alguns
(porém longos) minutos, entraram numa espécie de sono profundo.
– Acordarão completamente humanos em algumas horas – foi o que disse a Dra.
Silveira. – Terão que ser hospitalizados em razão das dores e mutilações, mas
ficarão bem em alguns dias.
– "Bem", Doutora? – duvidei. – E em apenas alguns dias?
– Ahn... razoavelmente bem. E... ok,
talvez leve algumas semanas. Mas voltarão a ser humanos e poderão levar uma
vida normal de novo, isso eu posso garantir.
Não era muito fácil de acreditar,
principalmente diante das mutilações que muitos tinham sofrido. E havia também
a questão dos danos cerebrais... Como reverter aquilo? No entanto, acho que a
Dra. Silveira merecia um crédito. Afinal, ela já provara ser muito competente.
E... bem, estávamos no futuro, oras! A medicina por certo evoluíra um
bocado!
– E agora? Quais são os planos,
Doutora?
– Por enquanto, isso basta. Pouco
antes de nos encontrarmos na entrada do elevador, recebi a informação de que a inteligência artificial foi reparada e
já reativou a proteção invisível que guarnece as fronteiras da sanidade. Amanhã nos organizaremos em grupos para
iniciarmos a pulverização no restante do mundo. Será um trabalho e tanto, mas
conseguiremos.
Eu sorri, sentindo-me parcialmente
vitorioso. E logo me apressei em retornar para a Velha Paulista. O mais importante ainda estava por ser feito: eu
precisava reencontrar minha linda biocientista.
Ao
abrir a porta do prédio onde a deixara, alegrei-me ao ver que Andressa me
esperava com um sorriso tímido em seus lábios carnudos. E minha felicidade
tornou-se ainda maior quando ela completou a frase que eu interrompera minutos atrás:
– Eu estou me apaixonando por você, Homem das Cavernas!
– E eu por você, Deusa do Futuro! – gritei em resposta, todo atabalhoado, mas muito feliz. Estava exausto, mas não me faltou energia para um beijo apaixonado, daqueles que eu só tinha visto até então em filmes.
Quem
diria... No século vinte e um, eu não passava de um Zé Ninguém. Sentia-me tão só e deprimido a ponto de ter me
oferecido como cobaia em uma experiência de viagem
temporal, sabendo que corria risco de vida. Porém, três séculos depois, conquisto uma linda
namorada e torno-me um herói. Estou transbordando felicidade. Jamais me senti tão vivo.
Sei
que estou sendo piegas, mas... vejam bem, eis aqui um fato que, ao menos para
mim, hoje é inquestionável: há lugar para todos neste mundo.
No tempo e no espaço!
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