Conto: O Chirriado Soturno da Guardiã
“Os
monstros existem. Os fantasmas também. Eles vivem dentro de nós e... Às vezes
eles ganham.” (Stephen King)
Não tenho uma boa noite de sono há
quase duas semanas. O pouco que durmo serve apenas para me trazer pesadelos com
criaturas agressivas e de um apetite carnívoro insaciável. Seu cardápio é
variado, mas elas parecem ter predileção por seres humanos. Em meus sonhos,
vejo-as rasgando vorazmente as entranhas de várias pessoas. Elas as comem
vivas! Um espetáculo aterrador, que tem me levado aos extremos do medo.
O
que mais me intriga é o fato de os pesadelos, ao se repetirem, afigurarem-se
cada vez mais repletos de detalhes, como se estivessem aperfeiçoando-se,
tentando simular a realidade e, de alguma forma, aproximando-se dela. Hoje, ao
me levantar, por alguns instantes fiquei em dúvida se a realidade era de fato a
tranquilidade do condomínio onde moro, ou se bastaria abrir a porta do quarto
para mergulhar novamente naquela floresta úmida e penumbrosa, cenário dos meus
sofrimentos oníricos. Meu garoto, se ainda estivesse morando comigo, resumiria
isto com uma única palavra: sinistro.
Almocei
no início desta tarde com minha ex-esposa (para tratar de outros assuntos
desagradáveis) e ela sugeriu que eu marcasse uma consulta com um neurologista.
Dou a mão à palmatória – foi uma boa sugestão. O problema é que só consegui
agendar um horário para a próxima semana. Enquanto isso, terei que continuar
lidando com meus pesadelos diários.
O
relógio do decodificador da TV a cabo sentencia: já passam das vinte e três horas.
Preciso ir para a cama, tentar dormir um pouco. Amanhã tenho uma reunião
importante no trabalho. Precisarei de toda minha lucidez.
******
Lá está ela – a enorme coruja
branca. Esqueci de lhes falar sobre ela. É o único ser neste cenário
perturbador que não me dá calafrios. A não ser, é claro, por seu chirriar:
longo, sofrido e melódico, como se estivesse cantando uma música triste. Ela
parece uma espécie de guardiã deste lugar. Está sempre próxima a um portão
enferrujado e semidestruído, no início do caminho lodoso e escorregadio que
antecede a floresta, palco dos acontecimentos que têm assombrado minhas noites.
Meus pesadelos começam sempre neste portão.
E não foi diferente desta vez.
Penso
em tentar retornar, mas a coruja imediatamente olha em minha direção e balança
a cabeça em sinal negativo. Eu quase posso jurar que ela apresenta uma
expressão de tristeza em sua face, como a me avisar sobre a impossibilidade do
regresso. De fato, estou dominado pela mesma sensação das noites anteriores –
um impulso mecânico de seguir adiante, radicalmente oposto ao meu desejo de
fugir dali o quanto antes. Dominado pela energia que reina ao meu redor, cedo à
imposição invisível e sigo em frente.
Como
sempre, bastam alguns passos para que eu comece a escutar as provas sonoras da
carnificina: as vozes guturais das criaturas, o barulho causado pela correria
entre o capinzal lamacento e, o pior de tudo: os gritos apavorados das pessoas
que são apanhadas para lhes servirem de ceia. Aqueles assassinos parecem ter
prazer em caçar. Matam como se estivessem praticando alguma odiosa modalidade
esportiva.
O máximo que consigo fazer para me
proteger é me abrigar atrás da árvore mais próxima ao velho portão, felizmente
frondosa o suficiente para me ocultar daqueles seres, cujos olhos amarelos
brilhantes parecem não ter dificuldade alguma para localizar suas presas em
meio à penumbra do lugar.
Quem seriam aquelas pessoas? Também
estariam sonhando como eu? Será que foram compelidas por algum tipo de sugestão
hipnótica para se aventurarem ao centro daquele matadouro? O mesmo poderá
acontecer comigo, em meus próximos pesadelos? Sim, pode ser isto... Talvez
estejamos sendo paulatinamente compelidos, por algum tipo de indução psíquica,
a nos oferecermos como caça.
Alcanço a árvore que me protege,
apesar do bambear de minhas pernas. O suor escorre pelo meu rosto e o tremor
toma conta de minhas mãos. Para meu desespero, a sensação de realidade é ainda
mais intensa do que nos sonhos anteriores. Estou em pânico; falta-me coragem
para lutar. Sinto-me ridículo, impotente ao extremo. Se vocês estivessem aqui,
sentindo a atmosfera de violência e morte que prevalece neste lugar, acho que
compreenderiam meu pavor.
Os seres canibais têm cerca de dois
metros e meio de altura. São bípedes e possuem o corpo inteiro recoberto por
pelos escuros e sebosos. São alados, mas também possuem longos braços, que
terminam em garras por certo muito afiadas, pois produzem um estrago impressionante
ao atacarem a carne humana. Gostaria de lhes fornecer mais detalhes sobre eles,
mas a tensão sempre abala minha capacidade de percepção. Além disso, o ambiente
é escuro e estou a vários metros de distância do centro da carnificina. De
qualquer forma, acreditem: talvez seja melhor vocês não conhecerem os
pormenores.
Sinto uma aproximação aérea atrás de
mim. Meu coração dispara. Fecho os olhos e tento rezar, embora tenha perdido a
fé desde o divórcio, há mais de três anos. Felizmente, o alívio chega brevemente:
é apenas a coruja que se aproxima. Realmente não a temo – sinto que é de
confiança. Ela também é uma criatura de porte admirável, até um pouco mais alta
do que eu. Olhando-a agora com as asas abertas, noto como sua envergadura é
imponente. Sem dúvida possui muita força, mas não me parece ágil. Talvez seja
uma ave idosa.
Ela olha para mim de uma forma quase
humana e chirria baixinho. E... é absurdo: eu consigo compreender os sons que
ela produz! Bem, talvez esta seja uma boa notícia, uma prova de que tudo isso
realmente não passa de um sonho, por mais realístico que ele seja.
– Lamento muito – ela me diz –, mas
estes seres primitivos alcançarão sua dimensão em questão de dias. Eu deveria
impedi-los, mas não posso. Como você já percebeu, estou velha. E eles são
muitos e extremamente vorazes. Eu não teria nenhuma chance.
Como ela sabe que a considero idosa?
Por acaso é uma coruja telepata? Isto não pode mesmo passar de um sonho. É
surreal demais!
– Estamos numa outra dimensão? –
decidi perguntar-lhe, com certa ironia.
– Noto o sarcasmo eu sua voz, mas
infelizmente isto não é nenhum tipo de brincadeira. O que está acontecendo é
muito sério. Estas criaturas estão conseguindo abrir uma fenda na película que
divide as duas realidades. Estamos, sim, numa outra dimensão. O território é o
mesmo no qual os humanos vivem. Aqui, por exemplo, é o condomínio onde você
mora. Por todo o universo, existem realidades sobrepostas dividindo os mesmos
espaços físicos.
– E você é a guardiã daqui, tipo
aqueles personagens de filmes de horror mesclados com fantasia? – gracejei mais
uma vez.
– Você não acredita no que está
vendo e eu não o culpo por isto. No seu lugar, eu teria o mesmo ceticismo.
Enquanto ela pondera, com seu
chirriado soturno e amigável (se é que isso é possível), observo duas daquelas
criaturas abomináveis sobrevoando uma região à minha esquerda, no encalço de
algumas pessoas que, de forma atabalhoada, tentavam escapar. Novamente o horror
toma conta de mim, pois percebo que a sensação de realidade torna-se muito
intensa. A tensão e o medo voltam a me dominar.
– Por que eu e
estas pessoas estamos aqui? Por que os outros da minha dimensão não estão aqui
também?
– Algumas pessoas, como você, são
menos suscetíveis à influência destes seres quando estão em sua própria
dimensão. Então, eles tentam enfraquecê-las durante seus sonhos, para que elas
não sejam um problema quando a invasão começar.
Bem,
isso é realmente estranho – pensei. Mas, para dizer a verdade, já não
duvidava muito de tudo que via e ouvia naquele lugar.
Olho novamente à minha esquerda. Com
o canto dos olhos, vejo aqueles assassinos alcançarem as pessoas que
perseguiam. Penso em correr até o local e tentar ajudar os humanos, mas não
tenho ânimo para sair da proteção da árvore. Sinto-me um covarde e pensar assim
me debilita ainda mais.
– Não se culpe. Você também não
teria chances – diz-me a bela coruja, abaixando a cabeça com tristeza, como a
assumir a culpa pelo horror que estávamos presenciando. – Você está começando a
compreender a gravidade da situação. Tente limpar sua mente agora. Se conseguir
fazer isto, adormecerá profundamente e deixará esta dimensão. Amanhã
conversaremos e tentaremos engendrar um plano para enfrentar estes seres na sua
dimensão. Lá, encontraremos aliados.
Pareceu-me uma boa ideia. Pelo
menos, pode ser um jeito de sair daqui. Esforço-me para me tranquilizar durante
vários segundos sem sucesso, até que, finalmente, começo a sentir um torpor e
mergulho no tranquilo vazio do sono pesado, deixando para trás aquele inferno.
Acho que a ave amiga, de alguma maneira, ajudou-me a fazer isto.
Abençoada
seja!
******
O celular desperta, tocando minha
música preferida. Ainda entre o sono e a vigília, percebo que minhas energias
foram parcialmente revigoradas. Aos poucos, recordo em detalhes o pesadelo
daquela madrugada. Ele tivera um aspecto mais real do que os anteriores, mas
terminara de uma maneira diferente, resultando num sono tranquilo. Talvez
aquilo indicasse um ponto final em minhas noites de terror.
De qualquer forma, não posso deixar
de comparecer à consulta que agendei no neurologista. O que tem acontecido
comigo não é normal. Por certo, tenho alguma espécie de patologia.
Espreguiço-me,
respirando longamente. Noto que minha cabeça dói um pouco. No mais, tudo parece
normal. Com certa hesitação, junto forças para abrir os olhos e encarar o novo
dia. Porém, antes de fazê-lo, ouço um som familiar – um chirriado sombrio, mas
amigo; uma linguagem que, por alguma razão, eu posso compreender:
– Você está saudável, mas seu mundo ainda
corre perigo – é o que ela me diz.
A enorme coruja branca.
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(*) – Conto
publicado originariamente na antologia literária The King – Volume I, da
Editora Multifoco (selo Anthology).
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