Esperança, um conto datado

            Última semana de novembro do ano de dois mil e doze. Início das férias em uma faculdade sediada na região central da capital paulista.
– Finalmente, as férias da facu! – foi o que gritou Larissa, assim que entrou com seu Uno Vivace no estacionamento do prédio no qual, há mais de uma década, sua família mantinha um apartamento de veraneio.
Minutos depois, a agitada morena já exibia suas curvas perfeitas entre os coqueiros do calçadão. Trajava uma curtíssima bermuda de jeans e caminhava com pressa, ora ajeitando os cabelos longos e negros, ora consultando as novidades em seu celular. Facebook, twitter, emails... Tudo ao mesmo tempo. Em seus ouvidos, a música vinda do celular gritava com a voz de Raul Seixas: O Diabo é o Pai do Rock! Larissa cantava junto com o artista, agitando freneticamente a cabeça. Na coxa esquerda, uma tatuagem com o logotipo da banda AC/DC, em chamas, denunciava sua preferência musical pelo rock pesado.
Fora um ano difícil na faculdade, com provas e trabalhos que lhe consumiram física e psicologicamente. Além disso, havia o estágio num Tribunal na Avenida Paulista. Sobrara pouco tempo durante o ano para se divertir. Larissa sentia-se exausta, mas ainda estava em ritmo acelerado. Ela tentava diminuir o ritmo dos passos, para mostrar com mais sensualidade seu corpo, mas não conseguia. Andava com rapidez, como se estivesse atrasada para um compromisso importante. Ainda assim, os quadris largos e a cintura fina movimentavam-se com graça.
            A seu favor, o fato de um corpo jovem ter o poder de se recuperar com rapidez. Contra a bela estudante de Direito, uma ansiedade crônica que lhe castigava desde criança. Se não havia preocupações, sua mente trabalhava para fabricá-las. E sua mente estava sempre em ebulição!
            Decidiu desligar a música. Tirou o fone de ouvidos, agitando os cabelos e chamando ainda mais a atenção dos marmanjos que circulavam nas redondezas. Respirou fundo e tentou relaxar um pouco sua mente. Porém, antes que pudesse iniciar seu momento zen, o celular tocou.
Era Patrícia, sua melhor amiga. A voz dela estava acelerada; a garota parecia tensa. Para Larissa, aquilo pareceu o prenúncio de que o dia não seria tão tranquilo quanto desejava que fosse.
            – La, está acontecendo uma coisa mega estranha aqui na Paulista.
            Até aí, nada de incomum. Patrícia costumava exagerar em suas observações. Quando estava às vésperas de uma prova importante, queixava-se de tonturas e dizia que sua pressão deveria estar abaixo de zero. A loura Patrícia era medrosa e hipocondríaca. Tinha uma beleza frágil, que se amoldava com perfeição à sua personalidade. Sua fisionomia angelical e a voz de menina eram outros elementos que denunciavam sua doçura.
            – Relaxa, Paty. Você já está de férias da facul e daqui duas semanas entrará em férias no estágio também. Deixe de ser melodramática.
            – Melodramática? Daqui a pouco o que está acontecendo aqui vai aparecer nos noticiários do mundo inteiro!
            Pelo jeito, sua melhor amiga ainda não tinha conseguido superar a agitação das provas finais. Olhando sob esse aspecto, as duas estavam na mesma situação. No entanto, era impossível para Larissa não rir ao imaginar o rosto de leite de Patrícia tornar-se rubro, como sempre acontecia durante suas crises de exagero.
            – bom, Paty. Que coisa mega estranha é essa? Por acaso estamos sendo invadidos por marcianos canibais ou algo parecido?
            – Acho que algo parecido – respondeu Patrícia, com a voz tensa.
            – Opa, a coisa parece séria – murmurou Larissa a si mesma, franzindo as estreitas sobrancelhas. Patrícia ouviu e reclamou:
            – É claro que é sério! Não acredita em mim?
            – Calma, amiga. Respire fundo e me diga pausadamente o que está acontecendo – ponderou a morena.
            – Uma n-nave imensa apareceu e p-pousou bem em c-cima do C-Conjunto N-Nacional – a voz de Patrícia era picotada por algum tipo de interferência.
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            Desta vez, a Paty se superou – refletiu Larissa. Sim; havia acontecido algo incomum no céu paulistano naquele dia: uma movimentação estranha de nuvens escuras, que irromperam com violência do firmamento até a atmosfera. De fato, parecia que algo imenso poderia rasgá-las a qualquer momento, porém surgiram apenas raios e relâmpagos. Assustadores, é verdade, mas nada além disso. Foi o que Larissa viu no noticiário da TV. Apenas na imaginação prodigiosa da amiga de mente influenciável é que uma nave brotara.
            – É isso que dá assistir Independence Day cinco vezes – brincava Larissa ao telefone, minutos depois, já em seu apartamento. A morena acabara de sair do banho e tinha apenas uma toalha envolvendo seu corpo escultural.
            – Na hora eu me lembrei do livro O Fim da Infância. Foi sinistro.
            – Que raio de livro é esse, Paty?
            – É ficção científica. Quer que eu lhe conte a história?
            – Agora não – bravejou Larissa, mostrando-se impaciente. – Preciso me vestir e comer alguma coisa. Ligo pra você depois. Beijo.
            Para Patrícia, no entanto, a conversa não terminara:
            – Tinha uma nave sim. Tenho certeza! Em formato de ovo, azulada, com partes transparentes que pareciam compartimentos com janelas.
            – Janelas? Uma nave espacial com janelas?
            – É, acho que sim.
            Larissa irritou-se com a amiga e disparou:
            – Então, amiga, por que ninguém mais viu essa coisa esquisita?
            – Porque o cérebro das outras pessoas não conseguiu processar direito o que estava acontecendo. O cérebro humano é assim, sabia? Nossos olhos só nos mostram o que o cérebro reconhece, o que está acostumado a ver.
            – Paty, o seu cérebro é igual ao das outras pessoas. Se o delas não processa algo, o seu também não processa. Você tem imaginação demais. Crie uma válvula de escape para suas fantasias.
            – Não preciso de nenhuma válvula de escape! O fato de meu cérebro ter processado o que aconteceu é uma prova de que tenho a mente aberta – o protesto da loirinha era doce, como de costume, mas estava se tornando enérgico.
            Larissa pensou em brincar com a amiga, dizendo que sua mente aberta estava deixando alguns parafusos caírem, mas preferiu guardar a piada. Sabia o quanto Patrícia era sensível e, embora estivesse um tanto irritada com aquela história, não queria aborrecê-la.
            – Eu não duvido de você, Paty. Só acho que é muito fantasiosa. Concentre-se no seu trabalho agora e tente esquecer isso por enquanto. Depois eu te ligo e a gente conversa mais, tá? Enquanto isso, acompanhe os noticiários e veja se aparecem novidades.
            A resposta veio quase inaudível. A voz de Patrícia estava carregada de desânimo e decepção:
            – Tá certo, La. Vou fazer isso.
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            – Maremoto; maremoto! – o grito viera do apartamento ao lado, acordando Larissa, de forma abrupta, de sua soneca vespertina.
            Não vou conseguir descansar hoje, pensou. Acho que não vou conseguir relaxar nunca! – desabafou em seguida.
            Contrariada e balbuciando uma combinação de palavrões, Larissa levantou-se do sofá e caminhou com ira até a sacada. Seu apartamento ficava na primeira quadra após a praia, de frente para o mar. Se houvesse algum aumento na altura das ondas, ela não teria a menor dificuldade para notar.
Bastou abrir a porta da sacada para perceber que algo estava errado. O barulho que vinha do mar era intenso, como se as águas marinhas se movimentassem nos arredores do prédio. Nas sacadas e prédios vizinhos, pessoas se aglomeravam.
Ao mirar seus olhos na direção do mar, Larissa viu ondas altas, que se formavam no horizonte e aproximavam-se do calçadão. Graças à pancada de chuva que caíra minutos antes, felizmente parecia não haver mais ninguém na praia. No entanto, a movimentação despertara a curiosidade dos motoristas que transitavam com seus carros na via conhecida como avenida da praia, provocando engarrafamentos e discussões.
Larissa jamais vira o mar tão revolto.
A estudante de Direito tirou do bolso o celular e filmou o horizonte, mirando no local em que as águas pareciam mais agitadas. Do décimo andar onde estava, pôde notar que as ondas não vinham de todas as direções do oceano, mas se formavam num determinado lugar, como se algo estivesse acontecendo sob as águas exatamente naquele ponto. Larissa teve a nítida impressão de que alguma coisa irromperia do mar a qualquer momento. Era inevitável lembrar-se do relato de Patrícia.
Dois ou três minutos depois, a agitação diminuiu, cessando por completo em menos de cinco minutos. Nada surgiu do fundo do mar rumo à superfície. Não houve barulho de explosão, não apareceram monstros marinhos, tampouco emergiram naves. Nada, absolutamente nada. Fora a coisa mais estranha que Larissa vira em sua vida.
Ela voltou para a sala instantes depois e conferiu a filmagem que fizera. Intrigada, murmurou:
– Tem alguma coisa estranha acontecendo. E deve ter relação com o que a Paty viu. Vou enviar esse vídeo para ela por email.
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            À noite, diante de seu computador, Patrícia via com seus pequenos olhos azuis o que a amiga – e, ao que parecia, todas as demais pessoas – não fora capaz de visualizar. Do belo azul das águas, emergira uma nave de interessante aerodinâmica. Era repleta de curvas e tinha um formato indefinido. A primeira ideia que veio à mente de Patrícia fora a de uma ameba gigante, ou de uma massa mal moldada. Na parte central, havia uma pequena elevação em formato cilíndrico. Não era um objeto feio, apenas estranho para nossos padrões de beleza. Possuía tonalidades suaves, que se alternavam enquanto ele se movimentava. As cores eram agradáveis de serem vistas, sobretudo quando os tímidos raios solares, que afastavam os resquícios da chuva que caíra, tocavam as extremidades da nave. O resultado desse encontro era um brilho intenso. Era óbvio que aquele engenho fora construído com um material desconhecido na Terra.
            A nave não era grande; parecia ter menos da metade do tamanho daquela que Patrícia vira na Avenida Paulista. A que visualizara no céu paulistano era mais imponente, mas a filmada por Larissa lhe parecera mais simpática. Ao menos, a sensação que lhe proporcionara era bem melhor. Quando vira o imenso ovo azul na Paulista, Patrícia tivera uma sensação bastante desagradável. Sentira uma onda de frio intenso; chegara até a pensar que estava febril. Mas não havia febre; bastou desviar seus olhos daquela “coisa” para recuperar o bem-estar.
            Tomando às mãos o telefone, Patrícia discou o número do celular da amiga. Estava fascinada com o vídeo e planejava visualizar o local de perto:
            – Amiga, hoje é sexta-feira e estou sem nada para fazer esse final de semana. Posso ir aí amanhã?
            – Eu quero que você venha hoje, Paty!
            – Ah, hoje não dá. Você sabe que eu tenho medo de dirigir à noite.
Patrícia e Larissa eram inseparáveis desde crianças, quando cursaram na mesma sala o terceiro ano do ensino fundamental. Era uma amizade de mais de dez anos. A confiança e o carinho que existia entre elas era muito grande e aumentara bastante a partir da adolescência. As primeiras paqueras, os primeiros conflitos, as dúvidas, as incertezas, os amores... Todas as experiências mais importantes eram compartilhadas entre elas. Eram como irmãs. Em tudo, até nas brigas passageiras. Que não eram raras...
            – Você já é adulta, Patrícia. Não pode mais ter esses medos infantis. Pegue seu carro e venha hoje! – Larissa nascera apenas três meses antes que a amiga, mas sempre atuava como uma irmã mais velha. Bem mais velha.
            Patrícia costumava ceder às recomendações da amiga e não precisou de mais do que um instante para rever seus planos:
            – Vou tomar um banho rápido, jantar e separar umas roupas. Antes das onze estarei aí, amiga!
            – Assim é que se fala, Paty! – bradou Larissa, com um sorriso de satisfação nos lábios carnudos e bem delineados.
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            Já era madrugada quando Larissa e Patrícia decidiram ir até o calçadão. Andaram um pouco, compartilharam sua estranheza com os fatos recentes e por fim sentaram-se num banco que lhes proporcionava um belo panorama da região. A noite estava agradável. No céu, a lua cheia era um espetáculo à parte. Parecia brilhar como nunca, iluminando a praia como se fosse um sol tênue.
            – Não é uma noite comum – profetizou Patrícia.
            – Não, não é uma noite comum. E vocês precisarão se acostumar com fatos incomuns. A partir de hoje, nada será como antes.
            As garotas estremeceram. Estavam certas de estarem sozinhas no calçadão. A voz que ouviram viera do banco ao lado, no qual, a um mero instante, não havia ninguém. Era uma voz doce, suave, sendo impossível distinguir se masculina ou feminina.
            Ao olharem na direção daquela voz, depararam-se com uma figura de aparência singular.
            – Não se assustem. Estou aqui para ajudar – ponderou a voz, enquanto a criatura se levantava e caminhava para o banco onde estavam as garotas.
            Conforme se aproximava, aquela figura se revelava para os olhos das estudantes de Direito. Era um homem – ao menos, aparentava ser – com cerca de um metro e oitenta e cinco de altura, de porte atlético e andar sereno. O corpo, muito musculoso, contrastava com os traços faciais delicados, quase femininos. Uma figura andrógina, que lhes inspirou grande simpatia. Usava vestes leves, quase transparentes, que se ajustavam ao corpo a cada movimento. A proximidade do contato físico fez com que a pele da criatura resplandecesse, iluminando-a de uma forma celestial.
Patrícia foi a primeira a se manifestar:
            – Você é um anjo, ou alguma coisa assim?
            – Sou alguma coisa assim – disse a criatura, revelando dentes muito alvos.
            Larissa estava em transe. Achara aquele homem lindíssimo. Sempre sonhara com um homem de porte físico atlético, mas que tivesse a doçura de uma mulher. A imagem que tinha à sua frente, no entanto, superava suas expectativas. Era um ser perfeito, nas formas, nos modos educados, no sorriso encantador... e tinha um par de grandes olhos azuis que a hipnotizavam. Os cabelos castanhos, muito curtos, deixavam mais evidentes as feições suaves daquele rosto.
            – Sente-se aqui conosco. E nos explique melhor o que significa esse seu alguma coisa assim – disse a morena, exibindo seu belo sorriso.
            O visitante sentou-se ao lado delas. Larissa e Patrícia sentiram a paz que emanava dele, enquanto ele, de alguma forma, percebia as reações fisiológicas que provocava nas duas humanas. Notando-as excitadas com sua presença, a criatura ruborizou. Não parecia habituada com desejos sexuais.
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            Larissa dormiu num quarto, Patrícia no outro. O sofá da sala abrigou o visitante, que passou a madrugada inteira assistindo desenhos animados. Ele ficara fascinado com o que vira; tinha o coração tão puro quanto o de uma criança humana.
            Pela manhã, Larissa foi espiá-lo. Trajando minúsculas roupas íntimas, que exibiam suas curvas voluptuosas, ela adentrou a sala. Decidira testá-lo:
            – Você passou a noite inteira acordado? – com a voz doce e provocante, ela se aproximou e sentou-se ao seu lado no sofá.
            – Não precisamos dormir como vocês – respondeu ele, sentindo-se acuado.
            Larissa o olhava com deslumbramento. Não era o que se costuma chamar de uma garota fácil, mas, sentindo-se diante do que considerava um verdadeiro deus grego, não conseguia conter seus instintos sexuais. Excitada, a universitária tocou com suavidade o ombro do visitante e beijou-o no rosto de forma delicada, fazendo-o estremecer. Depois, sussurrou em seu ouvido:
            – Ainda não nos disse seu nome.
            Naquele instante, Patrícia surgiu diante deles. Larissa assustou-se e se afastou. Ao contrário da amiga morena, a loura estava com um pijama discreto. Tímida, a garota ficou encabulada diante da cena que visualizou.
            – Meu nome é Ariel – disse ele em voz alta, tentando desfazer o momento embaraçoso.
            – Conte-nos mais sobre você e a razão de estar aqui – pediu Patrícia. Com os olhos, ela perguntou à amiga se podia se aproximar. A ligação entre as duas era tão forte que lhes permitia compreenderem-se sem precisarem usar as palavras. Larissa estava visivelmente desconfortável, envergonhada por sua própria ousadia, mas emitiu um sorriso tênue, o que indicava que Patrícia poderia sentar-se ao lado deles. A loura aproximou-se com cautela e sentou-se no canto do sofá.
            Ariel falou com um tom professoral:
            – Vocês devem ter ouvido falar muito num possível apocalipse no final deste ano.
            Larissa arregalou os olhos, interrompendo-o:
            – Então esses comentários sobre um apocalipse em dezembro de dois mil e doze são procedentes? As profecias maias estão corretas?
            – O apocalipse é uma realidade possível. Infelizmente, nossos estudos indicam que é bastante provável. Quanto aos maias, eles não profetizaram, apenas foram informados sobre uma grande mudança que acontecerá na Terra. A mudança que está por vir é certa; o apocalipse, não. Ela marcará o final de um ciclo na trajetória dos humanos desse planeta.
            – Você veio naquela nave que saiu das águas?
            – Sim, Patrícia. Na verdade, estamos espalhados por várias regiões litorâneas do globo, tentando protegê-los. Meu povo tem a missão de cuidar de vocês desde o início dos tempos.
            – São nossos anjos da guarda?
            – Não exatamente, Larissa. Somos seres de uma espécie semelhante à do povo da Terra, porém muito mais antigos. Tivemos mais tempo para evoluir e recebemos o encargo de cuidar de vocês. Vocês chamam isso de anjos, mas nos consideramos apenas seus tutores.
            – Aquela nave que vi sobre a Avenida Paulista pode ser um problema?
            – Ela é um grande problema, Patrícia. E, como ela, existem outras pairando sobre as mais importantes capitais do mundo. Em breve, todos poderão visualizá-las, assim como você, que tem a sensibilidade mais aguçada que as outras pessoas.
            – Que seres estão nestas naves? – perguntou Larissa, percebendo a gravidade do que estava acontecendo.
            – Criaturas constituídas de energias voláteis. Não possuem uma forma física definida.
            – E o que elas querem de nós? – insistiu a morena.
            Pela primeira vez, a criatura precisou refletir por alguns instantes antes de responder:
            – Na faculdade, vocês passam por avaliações periódicas que testam seus conhecimentos, não é verdade? Então, estes seres estão aqui com a missão de testá-los, de avaliar seu estágio evolutivo. Saber se “passaram de ano”. São apenas instrumentos guiados por uma força superior, só que não brincam em serviço.
            – Eles podem nos matar? – gritou Patrícia, assustada.
            – Diretamente, não. Mas podem induzi-los a se matarem, se concluírem que vocês não são dignos de continuar habitando a Terra.
            – E você? Acredita que os humanos não merecem este planeta?
– Não, Patrícia. Penso de maneira diferente, assim como os outros tutores. Enxergamos em seu povo uma grande capacidade para evoluir em espírito, mas vocês estão caminhando a passos lentos. Há um prazo para tudo no universo. E o povo da Terra chegou a um momento crítico em sua existência.
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            Os conflitos começaram nas grandes capitais. Depois, se alastraram para as demais regiões, atingindo todos os rincões do planeta. No mundo inteiro, a partir do dia seguinte à aparição detectada pelos olhos de Patrícia na Avenida Paulista, o número de homicídios aumentou de forma assustadora. Era como se o ódio estivesse no ar.
Doutrinas discriminatórias ganharam novos e fervorosos adeptos. Conflitos religiosos intensificaram-se, transformando-se em guerras nos dias que se seguiram. A notícia mais assustadora chegara do Oriente Médio. Uma guerra fora deflagrada entre Irã e Israel, ganhando rápida adesão de outros países da região. Um conflito sangrento, que culminava em destruição e mortes sem precedentes em toda aquela região do globo terrestre.
            Nas localidades mais populosas, o trânsito caótico causava constantes desentendimentos, que culminavam muitas vezes em agressões físicas, disparos de armas de fogo e inúmeras mortes. O caos se instalara em poucos dias.
            Os habitantes da Terra, tomados por um ódio irracional, não conseguiam entender o que estava acontecendo. Reduzidos a seus instintos mais destrutivos, os seres humanos não raciocinavam antes de agir, tampouco refletiam sobre as ações praticadas. As pessoas foram transformadas em máquinas de matar. Não havia compaixão.
            Como acontecera em São Paulo, havia naves azuis pairando sobre a atmosfera das mais importantes capitais do globo. A mera presença delas parecia afetar o sistema nervoso central dos seres humanos, despertando-lhes uma fúria impressionante.
            Nas regiões litorâneas, as naves que emergiram dos mares, agora já detectadas pelos cérebros dos que residiam nas redondezas, emitiam uma espécie de energia, que produzia um efeito tranquilizante na atmosfera. Era um paliativo, cuja eficácia variava de pessoa para pessoa.
            Larissa e Patrícia foram levadas por Ariel para o interior de sua nave, que pousara sobre a areia. De forma incompreensível para nossos sentidos, ela era bem maior em seu interior do que aparentava ser no aspecto externo. A grande ameba, como a apelidara Patrícia, era povoada por seres de aspecto semelhante ao de Ariel, todos de modos serenos e voz adocicada. Não havia na nave painéis, tampouco botões, muito menos as antiquadas alavancas. Apenas luzes e sons, que se misturavam e mudavam de tonalidade. Patrícia concluiu que a nave deveria possuir uma inteligência artificial, ou que talvez fosse movida por comandos mentais.
Larissa notou que não havia entre os visitantes nenhuma criatura com formas femininas e questionou-se se haveria mulheres no planeta deles. Provavelmente não, pensava a morena, pois ficara claro que Ariel não tinha qualquer experiência relacionada ao sexo. Uma incógnita que lhe despertou a curiosidade.
            Combater as outras naves, dissera-lhes Ariel, estava fora de cogitação, pois nossos tutores jamais faziam uso da força. Além disso, os visitantes hostis tinham uma missão a cumprir, estabelecida por um poder superior que os tutores em hipótese alguma poderiam afrontar.
            – Como vamos acabar com essa carnificina então? – questionou Larissa, num misto de desespero e impaciência.
            Essa era a grande questão.
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            – A presença deles na atmosfera do planeta agride o sistema nervoso central e estimula a ira nos seres humanos. A energia que nossas naves liberam ajuda as pessoas a encontrarem em si o equilíbrio e o bem estar. Eu sei que isso parece pouco, mas são forças que equivalem em potência. A única vantagem deles é terem surgido em regiões mais populosas, mas a energia que liberamos em breve atuará também em todas as áreas do globo terrestre – explicava-lhes Ariel. – Quando isso acontecer, creio que a ira será abrandada.
            – Vocês não têm como saber para que lado as pessoas se inclinarão? – questionou Larissa.
            – A grande maioria tende a seguir os maus impulsos, mas existe em vocês o potencial para superar isso. É preciso criar situações que despertem o amor nos seres humanos. Provas de amor são antídotos eficazes contra a energia daqueles seres. O amor é a força mais poderosa do universo. É o que poderá salvá-los da destruição.
            – E vocês não podem simplesmente libertar a mente das pessoas das más influências?
            – Não, Larissa, não podemos interferir no livre-arbítrio das outras criaturas. Só podemos emitir energias de igual potência às dos agressores. E isso já foi feito. Agora, o futuro de vocês depende do esforço pessoal de cada um. Dezembro de dois mil e doze foi estabelecido pelo Poder Supremo como o mês do julgamento dos seres humanos que habitam a Terra. As criaturas de energias voláteis, no fim das contas, estão apenas cumprindo seu papel de acusadores, tornando mais intensas suas maiores falhas de caráter. Nós, seus tutores, atuamos como advogados de defesa, procurando mostrar que vocês podem encontrar um ponto de equilíbrio. São vocês, no entanto, que darão seu próprio veredicto. Estão sendo expostos às suas maiores vulnerabilidades. Precisam mostrar que são capazes de superá-las.
            – Se fracassarmos, vocês vão nos abandonar à nossa própria sorte? – quis saber Patrícia, com lágrimas nos olhos.
            – Ficaremos aqui para acompanhar os acontecimentos. Mesmo que o mal triunfe, não será o fim. No entanto, o recomeço será difícil.
            – E se o lado bom das pessoas vencer?
            – Então a Terra irá se transformar, gradativamente, num lugar semelhante àquilo que vocês chamam de paraíso.
            Ouvindo-o e admirando seu corpo, Larissa se perguntava se no paraíso todos teriam uma aparência tão atraente. Encantada com a aura azul que contornava Ariel, Patrícia questionava-se se no paraíso todas as criaturas seriam tão doces e bondosas quanto ele. Cada uma à sua maneira, ambas estavam se apaixonando por aquele ser andrógino.
            – Vou acompanhá-las de volta ao apartamento. Patrícia, não volte por enquanto para São Paulo. Espere alguns dias para ver o rumo dos acontecimentos.
            Patrícia, como de costume, era a imagem da fragilidade. Sua estatura era baixa, o corpo delgado e a pele muito clara. Ao ouvir o conselho de Ariel, ela corou. Ficara feliz ao notar que ele se importava com seu bem estar.
A seu lado, Larissa esforçava-se para sufocar o ciúme.
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Alguns dias se passaram. Como Ariel previra, a intensidade do mal diminuiu a partir de um determinado momento, com o arrependimento de algumas pessoas. Dois ou três dias depois, entretanto, fortaleceu-se novamente. Larissa perdeu um tio, alvejado por uma bala durante uma discussão de trânsito. Seu único irmão também estava ferido, mas não corria risco de vida. A dor maior era de Patrícia, que recebera na manhã anterior a notícia de que a mãe fora vítima da insanidade de alguns adolescentes, que a atacaram e a espancaram sem qualquer motivo. Ela não resistira aos ferimentos.
– Não acredito que o mundo como conhecemos vai acabar! – dizia Larissa, enquanto andava de um lado para outro na sala, exibindo em seu semblante o medo e a impaciência.
– Temos que acreditar no melhor, amiga. Vamos fazer pensamento positivo!
Ao ouvir a ponderação inocente da amiga, Larissa explodiu:
– Pensamento positivo? Pensamento positivo, Patrícia? Não vê que o mundo está em guerra? Não leu na internet que as pessoas estão se matando? Que enlouqueceram? Não notou que quase um quarto das pessoas ao redor do mundo foram assassinadas ou estão feridas? Não percebeu que não há mais lugares nos hospitais para abrigar essas pessoas? E você acha que só o pensamento positivo pode acabar com esse inferno?
Habitualmente tranquila, Patrícia enfureceu-se:
– Eu perdi minha mãe, sua idiota!
Descontrolada, Larissa partiu para cima da amiga, chacoalhando seus ombros:
– Você está se fazendo de vítima para conquistar o Ariel! Pensa que me engana, vadia?
– Larissa, eu perdi minha mãe! Não quero perder a amizade da minha única irmã! – gritou Patrícia, aos prantos, fazendo com que Larissa caísse em si, envergonhando-se de sua atitude.
Naquele momento, a figura de Ariel surgiu no apartamento. Não tocou a campainha, tampouco bateu na porta. Simplesmente materializou-se diante delas, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Usava vestes de cor prateada, longas e largas. Seu corpo agora emitia luzes mais intensas, numa mescla de cores que se refletiam nas paredes da sala de forma ofuscante. As meninas assustaram-se num primeiro momento, afastando-se dois passos, mas tiveram uma sensação muito acolhedora em seguida. Unidas pelo carinho que nutriam mutuamente há muitos anos, elas se abraçaram. Abraçadas e surpresas, viram duas longas asas brotarem nas costas de Ariel e abrirem-se de forma magnífica. Eram alvas e muito longas. Quando totalmente abertas, mal couberam na sala do apartamento de Larissa.
A imagem de Ariel, agora transfigurado em algo verdadeiramente angelical, era de uma beleza inédita para os olhos das duas estudantes de Direito. Foi preciso que alguns minutos se passassem para que elas recuperassem o fôlego. Antes disso, ele lhes falou com sua serenidade habitual:
– Notaram que só o amor pode controlar o ódio?
Elas o ouviram em silêncio. Afinal, aquela pergunta era, ao mesmo tempo, sua resposta.
Ao vê-las assustadas, Ariel encolheu suas asas e sentou-se ao lado delas no sofá. A TV estava ligada e não trazia boas notícias: duas armas nucleares haviam sido disparadas no conflito que estava sendo travado entre as Coreias. Além disso, uma guerra envolvendo vários países da Europa estava para eclodir a qualquer momento. Até mesmo o Brasil, normalmente um país pacífico, poderia se fragmentar em breve. A desconfiança entre os habitantes das cinco regiões do país e entre os integrantes das diversas etnias que constituem nossa nação havia aumentado desde a aparição das naves hostis. Naquele momento, o noticiário informava que os estados da região sul pretendiam declarar sua independência nas próximas horas, fundando a República dos Pampas. A presidenta adiantara que não aceitaria esta cisão. Disse que, se fosse preciso, usaria as Forças Armadas para manter a integridade do território. A tensão era grande.
Com dificuldades para conter a atração física que sentia por Ariel, Larissa encostou a cabeça sobre seu tórax. Queria sentir o calor que emanava daquele corpo. Porém, para sua surpresa, sua cabeça pareceu afundar no peito da criatura. Larissa deu um pulo no sofá.
– Você... não é feito de carne?
– Sou feito de uma matéria diferente.
– Como vocês fazem amor no seu planeta? – questionou ela, movida por seus instintos.
– Não é preciso contato físico para demonstrar amor – disse ele, com naturalidade.
            – E o prazer? – quis saber a incrédula Larissa.
– Você não pode pensar em sexo quando o mundo está acabando! – protestou Patrícia, inconformada com a insistência da amiga.
            – Nós experimentamos o prazer compartilhando nossos pensamentos – explicou Ariel, com sua pureza habitual.
            Tudo aquilo era muito mais do que a mente prática de Larissa conseguia processar naquele momento. Na sua concepção, um mundo sem prazer físico poderia até ter uma aparência bonita, com ares de paraíso, mas seria por demais monótono. Compartilhar pensamentos em nada contribuiria, em sua ótica, para espantar o tédio de viver num lugar assim. Que tipos de criaturas experimentariam o prazer daquela maneira?
            – Preciso tomar um ar – murmurou, cabisbaixa. E deixou o anjo e a loura sozinhos em seu apartamento.
            Patrícia contemplou a imagem de Ariel. Também estava fascinada por ele. Não era apenas o aspecto físico que a atraía, mas algo invisível que emanava dele e lhe transmitia uma sensação indescritível. O corpo aparentava ser muito forte, mas, como notara Larissa, não tinha solidez alguma. Patrícia experimentou, com suas mãos, pressionar com força as dele, e constatou que a matéria de que era formado podia ser penetrada, expandindo-se e alterando levemente sua forma.
            – Não dói quando eu faço isso?
            – Nem um pouco.
            Para surpresa de Ariel, o contato físico estabelecera uma conexão especial entre eles. Patrícia criou coragem e arriscou:
            – Me ensina?
            – O que você quer aprender, Patrícia?
            - A fazer amor como vocês.
******
            Pouco mais de uma hora depois, Larissa retornou. Quando abriu a porta do apartamento, deparou-se com uma cena insólita. Sentados no sofá, sem se tocarem, notou os corpos de Patrícia e Ariel alternarem cores e emitirem fachos de luz, além de perfumes doces e inéditos para seus sentidos. Uma música enigmática se espalhava pelo ambiente[1]. Larissa era pianista, mas desconhecia por completo as notas musicais que ecoavam em seu apartamento. Todavia, podia perceber que a melodia e a harmonia eram de uma complexidade impressionante.
            Vendo sua melhor amiga praticando com o objeto de seu desejo o relacionamento mais íntimo que os tutores eram capazes de compartilhar, Larissa sentiu-se derrotada. Em silêncio, abandonou o ambiente, deixando-os novamente a sós.
            - Acho que é isso que se costuma chamar de almas gêmeas – sussurrou para si mesma, enquanto passava pela guarita do prédio.
            Com passos lentos, Larissa atravessou a avenida que antecedia o calçadão. Usava a mesma bermuda de jeans do dia em que chegara à baixada santista, só que desta vez a morena caminhava com elegância. Sua elegância, no entanto, era triste. Mantendo os olhos fixos no mar, que tanto a encantava, Larissa caminhou até a praia, parando à beira-mar. Sentou-se na areia e observou a beleza das águas, com suas faixas verdes e azuis, que brilhavam ao contato dos raios solares. A crista das ondas, de um branco muito alvo, completava aquele cenário paradisíaco.
            Não lhe parecia sensato, mas pensar em Ariel a deixava ainda mais triste do que vivenciar a agonia da vida humana na Terra. Apaixonara-se de verdade; não tinha culpa se desejava expressar seus sentimentos por intermédio do sexo. Era essa a forma que seu corpo reagia à paixão.
Uma sensação angustiante tomou conta de Larissa. Ela fechou os olhos e estendeu os braços, buscando forças no infinito que a circundava. Recordou-se da imagem que vira há pouco em seu apartamento: havia algo que ligava a criatura angelical à sua amiga Patrícia, algo que Larissa não se sentia capaz de compreender.
            Pensou na amiga. Lembrou-se da infância e de como protegia Patrícia das outras crianças. Larissa sempre fora mais valente, brigona e decidida. Recordou-se do dia em que juraram amizade eterna. Diante da imensidão do mar, quase podia visualizar novamente a menina loura dizendo que a amava. Larissa ficara calada naquele momento, pois considerara um exagero da amiga. Agora, no entanto, a recordação a fazia chorar.
            A morena finalmente entendeu que também amava Patrícia. Era uma forma de amor fraternal, sem necessidade de qualquer contato físico. Ela jamais imaginara a possibilidade de sentir prazer com o corpo da amiga e, no entanto, não podia viver sem ela.
Sim, refletiu, o amor pode se manifestar das mais variadas formas. A variedade está presente em tudo no mundo. Então... por que os tutores não teriam o direito de expressarem o amor daquele jeito estranho? E por que Ariel não poderia preferir Patrícia? Não teria ele o direito de escolha?
No momento em que as águas marinhas alcançaram seus pés, concentrou seus pensamentos no inferno que estava assolando o planeta. Tudo aquilo era fruto da incompreensão para com aqueles que não compartilhavam das mesmas convicções e sentimentos. A intolerância e o desrespeito à diversidade estavam destruindo nossa civilização. As criaturas voláteis apenas tornaram óbvia esta realidade.
Em meio ao turbilhão de pensamentos, outra música de Raul Seixas veio-lhe à mente, como uma espécie de intuição:
“Mas cada um nasceu com a sua voz
Pra dizer, pra falar
De forma diferente
O que todo mundo sente”
Somos todos iguais – desabafou em voz alta, embora não houvesse ninguém por perto para ouvi-la. Somos todos iguais e estamos nos matando!
Revoltada, Larissa levantou-se e caminhou pela praia. Depois de refletir por algum tempo, concluiu que não tentaria interferir no relacionamento entre Patrícia e Ariel. Ela era a irmã mais velha; tinha o dever de zelar pela felicidade da caçula, mesmo que isso lhe custasse muitas lágrimas.
Espero que eles tenham tempo para se amar, que não morram no meio desta loucura.
Pensar na felicidade de Patrícia aliviava sua tristeza, mas ainda era muito pouco diante de tudo o que estava acontecendo. Ela precisava fazer algo para melhorar a situação de todos no planeta. Alertar as pessoas de alguma forma, falar da importância de aprenderem a conviver. Mas... como faria isso? Alguém a ouviria, por acaso?
Não posso fazer nada, concluiu. Sou apenas mais uma idiota num mundo de idiotas.
Felizmente, estava enganada.
Ariel não estava autorizado a revelar, mas Larissa era uma das pessoas escolhidas para serem monitoradas pelo Poder Supremo naquele momento crucial. Tinha sido exposta a uma prova de amor e sua conduta fora considerada satisfatória. Ela não se portara como um anjo, mas fizera o que se esperava de um ser humano: mostrara-se capaz de demonstrar amor e de se preocupar com o bem estar de seus semelhantes.
Era o suficiente para um recomeço.
Se a semente germinar, se outras pessoas comportarem-se de forma semelhante, então há esperança para os habitantes da Terra.
Uma tênue esperança.

(*) – Conto publicado originariamente na edição nº 104 do Somnium, publicação oficial do Clube de Leitores de Ficção Científica: http://www.clfc.com.br/somnium/Somnium104.pdf



[1] Inspirado em cena do filme Cocoon.

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